Chineses crescem, na Europa, agora com modelos a combustão
O mercado brasileiro é amplamente dominado por marcas de grupos automotivos europeus e asiáticos. Só as gigantes europeias respondem, hoje, por quase 60% das vendas nacionais – para quem ainda não se deu conta, apenas Ford e General Motors, dentre as companhias presentes no Brasil, mantêm a cidadania norte-americana.
Isso, por si só, não teria nenhum impacto nas nossas vidas e empregamos o “não teria”, no futuro do pretérito, justamente porque Stellantis, Volkswagen, Renault, Mercedes-Benz e BMW vêm perdendo terreno para as montadoras chinesas dentro de casa, ou seja, na Europa, até mesmo entre os modelos equipados com motores a combustão interna.
E se a virada da eletromobilidade caiu como uma bomba atômica sobre os fabricantes tradicionais, a ofensiva no segmento mais desqualificado do Velho Continente mostra que “a vaca pode ir para o brejo” mais rápido do que se desenha.
“Os chineses são muito dinâmicos e se ajustaram tanto à guerra tarifária quanto à estabilização na demanda por EVs, lançando produtos que se conformam rapidamente ao momento que vive o mercado europeu”, avalia o analista sênior da Dataforce, que fornece soluções de inteligência, monitoramento e análise para o setor automotivo, Benjamin Kibies.
Dados divulgados no portal alemão “Automobilwoche” mostram que as vendas de carros de passeio e comerciais leves chineses aumentaram 78% na Europa, só nos primeiros três meses do ano – no mesmo intervalo, as vendas de EVs chineses também cresceram no Velho Continente, mas “apenas” 29%.
Na prática, o aumento na taxação dos EVs chineses em até 45% retirou competitividade dos “invasores”, blindando momentaneamente as marcas europeias, mas os asiáticos realinharam sua oferta e, hoje, estão vendendo mais carros do que nunca, na Europa.
O número de modelos “made in China” atingiu um recorde, superando 150 mil unidades, mesmo com os eletrificados respondendo por apenas 30% dos registros, a menor parcela desde o mesmo período de 2020. “De olho em metas de emissão de carbono cada vez mais restritivas, as marcas chinesas vinham priorizando os EVs, no Velho Continente. Mas isso mudou quando a União Europeia (UE) impôs tarifas mais altas sobre esse segmento, no ano passado”, explica Kibies.
De acordo com ele, a estagnação comercial dos elétricos puros fez com que as montadoras chinesas recorressem aos híbridos e às linhas tradicionais para compensar a balança. “Pela primeira vez, a BYD, que é a grande potência global entre os EVs, está vendendo mais híbridos plug-in, na UE e no Reino Unido.
Da mesma forma, a MG – marca da gigante estatal SAIC Motor – vendeu quase 47 mil unidades entre híbridos convencionais, híbridos plug-in e modelos com motor a combustão nos países da UE, volume que corresponde a mais de o dobro do número registrado no início de 2024, em que pese o fato de as vendas de EVs da marca terem caído pela metade”, destaca o analista.
Domínio tecnológico
Desde o segundo semestre de 2024, a UE começou a definir tarifas de importação mais altas para EVs chineses, visando beneficiar fabricantes europeus e seus fornecedores. Embora a medida tenha impedido as marcas chinesas de conquistarem uma fatia maior do mercado continental, elas também comprometem as metas ambientais do bloco.
Na prática, as sobretaxas retardaram – leia-se atrasaram, detiveram, adiaram, delongaram – o avanço dos modelos verdes, tornando as importações chinesas mais caras, mas tanto a VW quanto a Stellantis, que lideraram politicamente as ações, enfrentam agora uma concorrência ainda mais acirrada, já que, em março, as marcas da Grande Muralha atingiram 5,2% de participação, na Europa, ultrapassando 5% pela primeira vez.
Na Espanha, por exemplo, as vendas de híbridos e carros com motor de combustão da MG mais que dobraram, ao mesmo tempo em que passaram de níveis minúsculos para mais de 5.500 unidades, na França. Na Itália, a marca de carros esportivos – de propriedade chinesa, desde meados dos anos 2000 – registrou um aumento de 57%, somando essas duas categorias.
“O setor automotivo responde por 10% do Produto Interno Bruto (PIB) da China e por 6,5% das exportações”, detalha o economista sênior do Commerzbank, um dos dois maiores bancos comerciais da Alemanha, Tommy Wu. “Mais do que isso, o setor simboliza a capacidade chinesa de operar gigafábricas, dentro de seu território, pulverizando seu o domínio tecnológico, no exterior”, acrescenta.
Apesar de o Brasil estar longe desta disputa, geograficamente, ela respingará por aqui na forma de inflação nos preços dos 0 km. Isso porque a perda de participação das marcas europeias, em seus mercados domésticos, tem que ser compensada de alguma forma e, historicamente, isso é feito por meio de maiores remessas de lucro enviadas daqui para as matrizes.
Todos sabem que o amor do brasileiro pelo automóvel acaba cegando o consumidor, que paga os preços mais altos do mundo por modelos ultrapassados – acreditando, coitado, que a culpa dos valores astronômicos é a carga tributária.
“É importantíssimo destacar que, no ano passado, as exportações chinesas de modelos equipados com motores a combustão representaram mais do que o dobro dos envios de EVs”, pontua Wu.
América do Sul
A América do Sul é o segundo maior mercado da Stellantis, perdendo apenas para a Europa que, por sua vez, também é o maior mercado mundial para a Ford. “Lugares como o México, onde os motores a combustão interna ainda são maioria, se tornarão campos de batalha importantes”, pontua Katrina Hamlin, editora da agência “Reuters” e especialista em cadeias produtivas globais.
“Cerca de 75% das exportações da China, no ano passado, foram de automóveis que consomem muita gasolina e isso tem um grande impacto no mercado sul-americano, onde as receitas da Ford devem cair 5%, em 2025, e tanto a Stellantis quanto a GM esperam crescimento muito pequeno, de um dígito”, complementa.
Só as vendas da BYD cresceram 328% no Brasil, no ano passado, comparadas com os números de 2023. “Temos que ter em mente que BYD, Chery e SAIC operam suas próprias frotas de navios para transporte de automóveis, permitindo que essas empresas mantenham o controle total de sua cadeia logística, entre produção e varejo”, esclarece o gerente geral de negócios da gigante chinesa, Wang Junbao.
“Gerenciando nossa própria infraestrutura de transporte, reduzimos custos e atrasos, alcançando um nível incomum de integração vertical”, acrescenta.
Em resumo, os fabricantes tradicionais, que passaram décadas vendendo – e ainda vendem – veículos ultrapassados e inseguros no Brasil, hoje não conseguem competir com as novas marcas chinesas nem em produto, nem em gestão, nem em tecnologia, nem em distribuição, nem em preços e nem em seus mercados cativos. Como diria o saudoso colega, José Roberto Nasser: “não fazem mais carros e o que vendem, na verdade, é empáfia”.
Jornalista Automotivo