Carros feitos no Brasil são realmente menos seguros que os europeus?
Nos últimos 15 anos, mais de 450 mil pessoas morreram em acidentes de tráfego no Brasil. Os números do DataSUS, plataforma do Ministério da Saúde, incluem todo tipo de transporte terrestre e englobam atropelamentos, ocorrências com bicicletas, motocicletas, automóveis de passeio, comerciais leves, caminhonetes, caminhões, ônibus, veículos de serviço e fora de estrada – apenas para o leitor ter uma ideia, os Estados Unidos perderam menos de 60 mil soldados em nove anos de combates, no Vietnã, entre 1964 e 73.
O que pouca gente se dá conta é que, para além da negligência e da imprudência dos brasileiros, que mantêm os números nacionais acima das 30 mil mortes anuais, carros produzidos e vendidos no país são, comprovadamente, inseguros. “É chocante que um mesmo modelo atenda os mais altos padrões de segurança, quando fabricado na Europa, e seja reprovado nos testes do Latin NCAP, quando produzido no Brasil”, comenta a ex-diretora geral da Consumers International, maior organização global de fiscalização e proteção do setor de consumo, Amanda Long.
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Para ela, a precariedade dos automóveis ‘made in Brazil’ é consequência da falta de regulamentação governamental. “Sabemos que as montadoras podem produzir veículos muito mais seguros, na América Latina”, garante Amanda, que é advogada consumerista e diretora-executiva do CCPi, grupo que elabora normas em nível internacional para produtos de construção.
Na prática, a recente reprovação de dez modelos nacionais nos ‘crash tests’ do Latin NCAP, escritório latino-americano do maior e mais importante programa de avaliação de segurança automotiva do mundo, põe por terra a falácia dos fabricantes de que seus produtos não só atendem às leis de segurança do país – o que é verdade – como os produzem reforçados para estradas precaríssimas.
“A gravidade dos feridos que chegam aos hospitais é horrenda. São ferimentos que não deviam ocorrer”, assegura o médico e professor Dirceu Rodrigues Alves Jr., diretor de comunicação da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (ABRAMET).
Desde 2020, Ford Ka (hatch e Sedan), Hyundai HB20, Kia Sportage, Fiat Argo, Fiat Cronos, Renault Duster, JAC E-JS1, Citroën C3 e Citroën Aircross “zeraram” os testes de colisão. Ou seja, qualquer pessoa que esteja a bordo de um destes modelos e se envolver em um acidente a mais de 60 km/h (os ‘crash tests’ são feitos a 64 km/h) tem mais chances de morrer do que de sobreviver. “Isso explica a altíssima taxa de mortalidade nos acidentes. São automóveis incrivelmente perigosos”, complementa a advogada consumerista e coordenadora institucional na Associação Brasileira de Defesa do Consumidor (Proteste), Maria Inês Dolci.
Sobreviver: uma chance em três
Para comprovar o que Maria Inês diz, basta comparar o desempenho do novo Citroën Aircross nacional (https://www.latinncap.com/po/resultado/186/citroen-c3-aircross--novo-aircross-+-2-airbags), testado há apenas três meses, com o do seu homônimo europeu da geração passada (https://www.euroncap.com/en/results/citro%c3%abn/c3+aircross/28711), testado em 2017. A bordo do antigo modelo vendido na Europa, um motorista francês, por exemplo, tinha 85% de chances de sair ileso de uma colisão frontal a 64 km/h, enquanto o brasileiro tem apenas 33% de chances de sobreviver se estiver dentro do nosso “novíssimo” Aircross, nas mesmíssimas condições. Apenas para o leitor não ter dúvida, as chances de o incauto morrer, neste tipo de ocorrência, são maiores do que as de ele escapar do caixão, mesmo que gravemente ferido.
“Devido às limitações inerentes ao campo laboratorial, os testes de colisão do Euro NCAP e do Latin NCAP fornecem uma estimativa, porém há uma correlação significativa com a realidade. Em termos práticos e comparados a dados policiais, seus resultados são compatíveis com lesões que levam a fatalidades e danos permanentes. Fazendo este paralelo, comprovamos que as chances de um ocupante vir a óbito, em um automóvel classificado com quatro estrelas, é quase 70% menor do que em um automóvel classificado com duas estrelas”, detalha o chefe de pesquisa da maior seguradora sueca, a Folksam Insurance, e professor de segurança no trânsito na divisão de segurança da Universidade de Tecnologia de Chalmers, Gotemburgo, Anders Kullgren.
O servilismo de alguns comunicadores sempre arranja, de pronto, justificativa para os resultados escandalosos do Latin NCAP, contestando o irretorquível. Mas uma leitura mais atenta e isenta do próprio consumidor, por menor que seja seu amor-próprio, revela a precarização dos automóveis fabricados e vendidos por aqui. O termo “estrutura instável” é extensamente repetido na avaliação dos modelos reprovados e, por mais que os sabujos se esforcem para defender as montadoras, seu conceito é simples: estruturas instáveis são aquelas que, quando descoladas dos suportes, não conseguem manter sua forma, apresentando deformações excessivas, rachaduras, colapsos parciais ou totais, colocando em risco a vida das pessoas que as utilizam.
Lata de sardinha
“Conta pouco o número de airbags se, após o impacto, a estrutura se retorce tanto que as equipes de resgate não conseguem nem retirar os feridos do meio das ferragens”, explica o engenheiro e secretário geral do Latin NCAP, Alejandro Furas. É justamente em função da instabilidade estrutural que as vítimas de acidentes são mortas esmagadas dentro de verdadeiras latas de sardinha, absurdamente ofertadas pelas marcas ocidentais como a quintessência da tecnologia.
“Há apenas dois anos, um compacto da chinesa JAC obteve nota zero, uma das piores de nossos testes. Houve interesse pela segurança e dedicação que, pouco tempo depois, se traduziram na nota máxima – cinco estrelas – do novo Dolphin Plus. Se a BYD provou que há como melhorar com um EV que custa o mesmo que um modelo tradicional, por que as outras marcas não fazem o mesmo?”, indaga Furas.
De acordo com a IHS Automotive, uma das maiores consultorias automotivas do mundo e parte da S&P Global, a margem de lucro dos fabricantes instalados no Brasil é 3,5 vezes maior do que as mesmas montadoras obtêm nos Estados Unidos e pelo menos o dobro da média mundial.
Apesar disso, nossos carros são produzidos com soldas mais fracas e materiais inferiores aos usados nos EUA e na Europa – não foi à toa que, há dez anos, nada menos que quatro dos cinco carros mais vendidos do país foram reprovados em ‘crash tests’. “As marcas fazem carros mais lucrativos para países onde as demandas, quaisquer que sejam, são menos rigorosas”, reportou o engenheiro de uma grande montadora à Associated Press, sob a condição de anonimato – ele, obviamente, não quer perder o emprego só por dizer a verdade.
Por fim, o recém-nomeado presidente benemérito do Global NCAP e ex-diretor geral da Fundação FIA (Federação Internacional de Automobilismo) para segurança automotiva, David Ward, dá uma clara indicação da forma com que o Primeiro Mundo enxerga a paixão do brasileiro por carros: “É, definitivamente, a diferença entre a vida e a morte, porque estamos falando de alguém – que sofre um acidente – morrer na hora, morrer em pouco tempo, ainda dentro do veículo, ou, como ocorre em outros países, conseguir desembarcar e sair sozinho”, exclama Ward. Trata-se de um fato de clareza solar, mas, infelizmente, é pouco provável que algum brasileiro se dê conta de que está pagando mais de R$ 100 mil por caixões sobre rodas.
Este texto contém análises e opiniões pessoais do colunista e não reflete, necessariamente, a opinião da Mobiauto.
Jornalista Automotivo