Como o golpe do Talibã no Afeganistão afeta o futuro dos carros elétricos

País da Ásia Central tem uma das maiores reservas de lítio no mundo, matéria-prima imprescindível para produção de baterias
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27.08.2021 às 08:00 • Atualizado em 23.12.2021
País da Ásia Central tem uma das maiores reservas de lítio no mundo, matéria-prima imprescindível para produção de baterias

Por Homero Gottardello

Nas décadas de 1980 e 90 do século passado, a criação de um estado socialista afegão foi motivo de disputa entre a extinta União Soviética e os Estados Unidos. 

Depois, foi o suposto combate ao terrorismo que serviu de pano de fundo para uma incursão militar americana que, de olho no petróleo, prometia implementar no país centro-asiático uma democracia nos moldes da do Tio Sam. 

Mas a coisa deu para trás e agora, que os talibãs tomaram o poder se aproveitando da debandada do Marines, tudo indica que o ópio deixará de ser o produto de exportação por “excelência” do Afeganistão. 

Pouca gente se deu conta, mas o rápido reconhecimento da China em relação ao novo emirado declarado pelos talibãs não se apoia nas questões geopolíticas do passado, mas em preceitos comerciais atualíssimos.

O Afeganistão possui reservas minerais, predominantemente de lítio e cobre, estimadas em US$ 1 trilhão (o equivalente a mais de R$ 5,3 trilhões).

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País da Ásia Central tem uma das maiores reservas de lítio no mundo, matéria-prima imprescindível para produção de baterias
Volta do Talibã ao poder no Afeganistão vem sendo chancelada pela China, que tem interesse em explorar as reservas locais de lítio

Quem acompanha as notícias do setor automotivo sabe que o lítio é a principal matéria-prima das baterias usadas pelos veículos elétricos, um produto cuja demanda global vem crescendo 20%, todos os anos.

“Os fornecedores da cadeia automotiva estão enfrentando grandes desafios e, para além dos gargalos de entrega e das margens operacionais cada vez menores, a virada para a eletromobilidade tem que ser concluída rapidamente”, analisa o engenheiro e sócio da consultoria Roland Berger, Thomas Schlick. 

Apenas para o leitor ter uma ideia da abundância do mineral em solo afegão, um memorando do Pentágono chamou o Afeganistão de “Arábia Saudita do lítio”, em alusão às reservas de petróleo sauditas. “A capacidade de adaptar a própria oferta se tornou uma questão de subsistência para os fornecedores”, frisa Schlick.

Para além do setor automotivo, o lítio também é matéria-prima indispensável para smartphones e laptops, e a China – como maior produtor mundial de smartphones, laptops e automóveis elétricos – precisa desesperadamente dessa matéria-prima. 

“Já se sabe que, em um futuro próximo, haverá uma crise no fornecimento desse mineral”, disse à Deutsche Welle o chefe de pesquisas do Instituto Austríaco para Política Europeia e de Segurança, Michael Tanchum. “Os chineses estão marcando sua posição no Afeganistão”, avalia.

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Vista aérea de Cabul, capital afegã. Relevo montanhoso dificulda a extração dos minerais presentes no país

Fato é que a instabilidade política afegã gera uma enorme insegurança e um ambiente de negócios dificílimo, que precisa de ser “domesticado”. A cada ano, a demanda por lítio para a produção de baterias que alimentam veículos elétricos aumenta em 70 mil toneladas.

Até 2025, os chineses demandarão 800 mil toneladas anuais do metal e é preciso resolver esta questão agora.

A Agência Internacional de Energia (AIE), ligada à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), estima que, até 2040, a demanda por lítio deve crescer 40 vezes em relação aos números atuais.

E se para a bateria de um smartphone não é necessária mais do que meia colher de chá do metal, o pacote de baterias que equipa um automóvel elétrico chega a ter 5.000 células. Isso demanda cerca de 10 quilos de matéria-prima bruta, sendo que uma tonelada do mineral não é suficiente para a montagem nem de 100 veículos.

De acordo com a consultoria Goldman Sachs, cada pacote de baterias de um Tesla Model S possui 63 kg de componentes à base de lítio, ou o equivalente ao usado em 10 mil smartphones.

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Um carro elétrico demanda insanamente muito mais lítio para a composição de suas baterias do que um smartphone

Longe do Afeganistão e perto do Brasil, na Bolívia, dona das maiores reservas globais de lítio, onde o metal desencadeou a chamada “febre do ouro branco”, uma fábrica no povoado de Llipe (distrito de Yaco, um município de menos de 7.500 habitantes) chegou a produzir 15 mil toneladas anuais.

Na Bolívia, a cobiça política patrocinou até mesmo um golpe de Estado. 

Portanto, se avaliarmos a situação política afegã, veremos que não é mera coincidência o fato de, há apenas dez dias, a gigante chinesa CATL (Contemporary Amperex Technology), desenvolvedora e produtora de baterias para elétricos, ter anunciado um plano acionário da ordem de US$ 9 bilhões.

Os recursos serão aplicados no financiamento de seis projetos para ampliação de sua capacidade de produção na China, onde a empresa prevê a construção de três novas fábricas, e também na Alemanha.

A CATL fornece pacotes de baterias para ninguém menos que Volkswagen, Tesla e Geely, e, só no dia do anúncio de capitalização, suas ações subiram 5% - hoje, o valor de mercado da empresa é de US$ 170 bilhões ou mais de R$ 910 bilhões, o que equivale a 4,4 vezes o da Ford.

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De quanto lítio o mundo precisa para os carros elétricos e como extrai-lo sem prejudicar ainda mais o meio ambiente? Respostas ainda são escassas

Como explorar o lítio do Afeganistão? Ninguém ainda sabe

De volta ao Afeganistão, o próprio Banco Mundial reconhece, em seu perfil para as nações, que a economia do país é “frágil e dependente de ajuda”, o que pode ser entendido como uma economia sujeita a iniciativas externas ou capitais estrangeiros. 

“O Afeganistão é uma das regiões mais ricas do mundo em metais necessários para a economia emergente do século 21”, aponta o especialista em segurança e cientista fundado do Ecological Futures Group, Rod Shoonover. 

Para ele, a insegurança, a falta de infraestrutura e a aridez do país impediram, pelo menos até agora, a extração destes minerais. 

“É improvável que isso mude em breve, sob o controle do Talibã, mas há um grande interesse de países como China, Índia e Paquistão, que podem tentar vencer o caos. Mas é um grande ponto de interrogação”, acrescenta.

Como o leitor deve imaginar, o lítio é um metal que pode ser encontrado em outros lugares do mundo, como na Alemanha, por exemplo. No Vale do Alto Reno, sob as águas borbulhantes da Floresta Negra alemã, empresas de energia e mineração pretendem trazer à tona um volume de matéria-prima que se estende por uma área de 300 quilômetros, suficiente para equipar 400 milhões de veículos elétricos.

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Pedras ricas em lítio em campo de extração na Bolívia

Trata-se de uma das maiores jazidas do mundo, capaz de garantir a independência para a indústria automotiva do país (coincidentemente concentrada na mesma região) em relação ao lítio importado. Mas aqui há um problema: a oposição da população e dos ambientalistas. 

É que estamos falando de um país onde, primeiro, as pessoas são infinitamente mais conscientes e, segundo, as regras de governança são também infinitamente mais rígidas do que nos precários escalões do Talibã. Enganar os administradores locais, como os próprios alemães fizeram na Bolívia, será mais difícil.

Todavia, uma startup de origem germano-austríaca, a Vulcan Energy Resources, está otimista com a descoberta e garante que pode fornecer lítio neutro em carbono – ou seja, sem emissões – com base na extração geotérmica, a partir da construção de cinco usinas. 

“O depósito do metal que temos aqui é gigantesco e suas propriedades são ideais para a produção de lítio de alta qualidade e em grande escala, garantindo a autonomia da Alemanha em relação ao produto”, disse o cofundador da companhia, Horst Kreuter, à Agência Reuters. 

A Vulcan Energy planeja investir 1,7 bilhão de euros (o equivalente a quase R$ 11 bilhões) no plano, mas, por enquanto, só capitalizou 75 milhões de euros (menos que R$ 500 milhões). Até 2024, a empresa pretende extrair 15 mil toneladas de hidróxido de lítio por ano e, a partir de 2025, aumentar a produção para 40 mil.

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Lago de extração de lítio localizado dentro de mina

Lítio, o novo “Ouro branco”

Para quem não conhece a saga do “ouro branco” boliviano, em 2018 o governo de Evo Morales firmou uma joint venture entre a estatal Yacimientos de Litio Bolivianos (YLB) e a empresa alemã ACI Systems, para exploração daquela que, ainda hoje, é a maior jazida de lítio no mundo (mais de 50% das reservas globais), no Salar de Uyuni. 

A exploração predatória do mineral secou rios, destruiu áreas de uma esplêndida paisagem natural, não melhorou as condições socioeconômicas dos povoados e causou uma verdadeira revolta na população do Departamento de Potosí. Pouco mais de um ano depois e logo após a reeleição de Morales, a parceria foi revogada.

“Prometemos que o lítio da Bolívia seria o combustível que alimentaria o mundo”, disse o ex-vice-presidente do país, o sociólogo e ex-líder guerrilheiro, Álvaro Marcelo García Linera, à “National Geographic”. 

De acordo com ele, Morales queria que empresas bolivianas produzissem baterias a partir de 2010 e automóveis elétricos já a partir de 2015. 

“As estimativas revelaram-se irrealistas. Recusamos a exploração das indústrias estrangeiras e decidimos que o Salar seria totalmente controlado por técnicos bolivianos. E isso, evidentemente, gerou grandes tensões”, relembrou.

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Salar de Uyuni, na Bolívia: extração de lítio tem gerado fortes impactos ambientais na região

A Bolívia só encontrou um parceiro alemão, depois de americanos e sul-coreanos não aceitarem seus termos, para o dificílimo e caríssimo processo de produção, que implica na separação do cloreto de sódio do de potássio e, ainda, do cloreto de magnésio..

Em 2018, o presidente da ACI Systems, Wolfgang Schmutz, prometia a criação de milhares de postos de trabalho diretos e dezenas de milhares indiretos. “Também vamos prover o país dos recursos e equipamentos necessários para o processamento do lítio na Bolívia”, disse Schmutz. 

Na prática, os bolivianos se frustraram ao perceber que sua participação no processo se resumia a transporte, venda de agregados e serviços de manutenção. Pior, o processamento do metal demanda quantidades estratosféricas de água. 

“As mineradoras extraíam água de áreas indígenas, secando suas lagoas e rios”, narra a bióloga Cristina Dorador, da Universidade de Antofagasta. “O solo está mais seco e quente. E isso está relacionado diretamente à extração de lítio nos salares. Houve uma mudança climática local claramente observável”.

Em 2019, um estudo geológico em Uyuni descobriu uma reserva de 21 milhões de toneladas da matéria-prima, mais que o dobro da estimativa anterior. Hoje, a Xinjiang TBEA Group, da China, é a parceira da YLB nas operações em Coipasa e Pastos Grandes.

Imagens: Shutterstock

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