Maior taxa de juros do mundo corrói indústria de carros no Brasil

Enquanto montadoras brasileiras interrompem produção e ensaiam demissões; concessionários chineses dão quase R$ 3 bilhões só em descontos, com taxa de juros de 3,6%
HG
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24.03.2023 às 17:00
Enquanto montadoras brasileiras interrompem produção e ensaiam demissões; concessionários chineses dão quase R$ 3 bilhões só em descontos, com taxa de juros de 3,6%

As discussões políticas tomaram conta das famílias, das relações no trabalho e da mesa do bar. Mas enquanto direitistas e esquerdistas se digladiam na defesa de suas respectivas lideranças, a boiada vai passando pela porteira da economia sem que ninguém se dê conta da precarização de sua própria situação financeira.  

Quando falamos da compra de um automóvel, seja ele novo ou usado, tratamos de um tema que vai muito além da misoginia, das cotas, das questões de gênero e do comunismo, que fatura mais de R$ 300 bilhões no Brasil, anualmente, e que ataca o seu bolso, diretamente.  

Enquanto montadoras brasileiras interrompem produção e ensaiam demissões; concessionários chineses dão quase R$ 3 bilhões só em descontos, com taxa de juros de 3,6%

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“O índice do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic) é usado pelo Banco Central para parametrizar outras taxas de juros, praticadas por bancos e pelo sistema financeiro de maneira geral. A Selic foi criada, no final dos 70, para disciplinar a compra e venda de títulos públicos, mas, na prática, é seu índice que define – a partir da expectativa de recebimento do investidor que adquiriu títulos – quanto o consumidor pagará por um financiamento”, explica o economista e professor doutor (prof. Dr.) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Antonio Luis Licha.  

“Desde o rendimento da poupança, passando por títulos como CDBs, CDIs, letras de créditos e debêntures, até o acesso ao crédito, todo cenário é impactado pela Selic. 

Maior taxa de juros do mundo 

Enquanto montadoras brasileiras interrompem produção e ensaiam demissões; concessionários chineses dão quase R$ 3 bilhões só em descontos, com taxa de juros de 3,6%

Hoje, o Brasil tem a taxa de juros mais alta do mundo (quase 14% ao ano, contra 3,6%, na China) e, como o leitor pode comprovar simulando o financiamento de um 0 km ou usado, esta é uma das razões do baque sentido pelo mercado de automóveis, neste primeiro semestre.  

“Em qualquer lugar do mundo, o aumento nas taxas de juros afeta o mercado de automóveis. No caso dos 0 km, este aumento não é tão sentido, porque as montadoras subsidiam os financiamentos por meio de bancos próprios”, explica a diretora executiva da Edmunds, maior guia de compras norte-americano, Jessica Caldwell.  

Muito longe do Brasil e totalmente alheia às questões nacionais, ela não doura a pílula em sua análise: “Dado que os preços dos modelos usados já alcançaram um teto, veremos a base de compradores de veículos novos se reforçar na classe alta. Em resumo, as classes B, C, D e E foram forçadas para fora deste círculo, em termos de acessibilidade e sua melhor – ou única – opção, para manter os boletos dentro de uma faixa digerível, é um seminovo”, acrescenta. 

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O aumento e mesmo a manutenção da taxa Selic no patamar atual encarecem o custo dos empréstimos ao consumidor, nominalmente os destinados à compra de um automóvel. Assim, não bastasse o desabastecimento decorrente da crise dos semicondutores, os consumidores têm que lidar com os preços escorchantes dos 0 km, que subiram mais de 50%, entre 2020 e o ano passado – hoje, o preço médio de um reles Fiat é de quase R$ 110 mil.  

Apenas para efeito comparativo, nos Estados Unidos, esta alta ficou em 12,5%, para veículos novos, e em 35%, para usados e, lá, a taxa média de juros para financiamentos nos concessionários é de menos de 5% ao ano – para seminovos, esse percentual sobe para 8%, número muito inferior aos mais de 55% anuais praticados por aqui. 

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“A taxa básica de juros brasileira está muito acima da média global e segue uma receita que nunca funcionou, já que nossa inflação não decorre de excesso na demanda – em sentido oposto ao do bordão econômico, o mercado está em franco declínio, com queda de 10% nas vendas de 0 km, nos últimos cinco anos. Na prática, os bancos são favorecidos com o recebimento destes juros, através do pagamento da dívida pública, enquanto o país se desindustrializa. Trabalhamos para engordar os especuladores e não sobra dinheiro para mais nada”, argumenta o economista José Álvaro de Lima Cardoso.  

Só em 2022, os gastos com a dívida pública consumiram mais de 45% do orçamento federal, muito mais do que os 12% reservados pelo governo norte-americano, em seu Orçamento Federal. 

Na China, 0 km com desconto 

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Se, no Brasil, o neoliberalismo ainda não conseguiu comprovar a eficiência do “laissez-faire”, há que se reconhecer que, do outro lado do mundo, o comunismo não é mais o mesmo, definitivamente.  

É que enquanto os maiores grupos automotivos instalados no Brasil suspendem a produção e dão férias coletivas com retorno previsto só para depois de 6 de abril, a SAIC Volkswagen Automotive, joint venture chinesa que reúne duas das maiores companhias do setor, em nível global, está oferecendo 3,7 bilhões de yuans (o equivalente a R$ 2,8 bilhões) em descontos para a compra de um zero-quilômetro.  

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Se por aqui, o neoliberalismo impõe uma redução de 700 mil unidades na capacidade instalada no país, reconfigurando todo o setor para baixo, na China, já são 40 marcas se digladiando para acabarem com seus estoques, antes da mudança nas regras de emissões que vai reforçar o maior mercado automotivo do mundo como aquele que também dita as regras, na virada da eletromobilidade.

“As montadoras brasileiras estão adequando suas linhas à nova realidade do mercado, que apresenta forte queda nas vendas – os números de fevereiro foram os piores dos últimos 17 anos, para este mês”, pontua o consultor da S&P Global, que fornece análises financeiras e soluções em negócios, Fernando Trujillo. 

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Ao mesmo tempo em que o brasileiro perde renda e encontra cada vez mais dificuldades para conseguir crédito, os concessionários chineses da SAIC Volkswagen exibem cartazes de descontos que vão de o equivalente a R$ 11.400 até R$ 38 mil, por unidade, para modelos como o grandalhão Teramont, o sedã Lavida e sofisticado Phideon. 

“O mercado automotivo chinês está trocando os modelos convencionais, equipados com motores a combustão, por EVs em uma velocidade inimaginável”, conta o editor-chefe do jornal “Automotive News China”, Yang Jian, que vive em Xangai. 

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“A explosão nas vendas de EVs também desencadeou uma revolução no setor de distribuição – concessionários – e isso também mudou o cenário”, acrescentou. A Guangzhou Automobile, parceiro chinês da Honda e da Toyota, também oferece subsídios, até o dia 31 deste mês. 

Otimismo aqui e realismo lá 

No Brasil, a mais otimista estimativa comercial para automóveis de passeio e comerciais leves, em 2023, é da ordem de 1,9 milhão de unidades, enquanto, na China, a previsão conservadora é para mais de 27 milhões de veículos – portanto, 14 vezes mais. Há 22 anos, o mercado brasileiro vendia 1,2 milhão de unidades, contra 605 mil unidades do mercado chinês.  

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“Nossa expectativa é para a manutenção do volume atual de produção até 2030, porque o consumidor perdeu seu poder de compra”, pondera o consultor da Bright Consulting, Paulo Cardamone. A consultoria acredita que, com uma capacidade instalada atual na casa de quatro milhões de unidades, a ociosidade chegue a 50%.  

“O ideal para a operação industrial é que se utilize 80% da capacidade instalada e as linhas de montagem são flexíveis justamente para isso, para se adequarem à volatilidade do mercado. Mas não apostamos no aumento da produção”, disse Cardamone. 

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O mais impressionante do comunismo chinês, que parece bem diferente daquele que desperta temor no Brasil, é que as vendas de veículos novos caíram 20%, por lá. Mas isso não impede os fabricantes oferecerem preços reduzidos para estimular a demanda, uma estratégia que segue à risca a máxima secular do “Pai do Liberalismo”, Adam Smith.  

“As vendas dos modelos de novas energias, que somam híbridos plug-in e elétricos, cresceram assombrosamente, respondendo por mais de 30% do mercado chinês, em fevereiro. No mês passado, as vendas da BYD, que só comercializa EVs, superaram todo o volume da VW pela segunda vez e os planos do governo de Pequim para um limite de emissões ainda mais rígido, a partir de 1º de julho, pressionam montadoras e concessionárias para limparem seus estoques”, frisa Jian, da “Automotive News China”. 

Enquanto montadoras brasileiras interrompem produção e ensaiam demissões; concessionários chineses dão quase R$ 3 bilhões só em descontos, com taxa de juros de 3,6%

Pior é que, enquanto o Brasil finge que a virada da eletromobilidade é um modismo passageiro, a China consolida uma indústria automotiva com mais de 130 marcas nacionais. A guerra de preços, provavelmente, vai acelerar a consolidação de sua posição de liderança global, mesmo diante do perfil fragmentado do setor.  

“Não há outra maneira de descrever o que está acontecendo, no mercado chinês, além de um declínio catastrófico no desempenho das marcas japonesas, europeias e norte-americanas, com seus modelos equipados com motores de combustão interna”, declarou o analista Bill Russo, da consultoria de investimentos e negócios Automobility, com sede em Xangai. 

E pensar que, há pouco tempo, tínhamos uma indústria pujante, recordes de vendas de modelos populares e mais que o dobro das vendas chinesas. Onde foi que erramos? 

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