Preço da gasolina faz franceses converterem carros para etanol e até GNV

Kits de conversão custam entre o equivalente a R$ 5.000 e R$ 11.000, mas economia, na ponta do lápis, só vem depois de 30.000 quilômetros
HG
Por
19.04.2022 às 10:28
Kits de conversão custam entre o equivalente a R$ 5.000 e R$ 11.000, mas economia, na ponta do lápis, só vem depois de 30.000 quilômetros

O leitor mais “rodado” deve se lembrar do final dos anos 90, quando o GNV (gás natural veicular) entrou no radar de taxistas e transportadores como uma alternativa mais econômica em relação ao etanol e à gasolina. Rapidamente, foi ganhando popularidade e, em 2006, a Fiat lançou a primeira geração do Siena Tetrafuel, sedan que já vinha “convertido de fábrica”.

O modelo chegou como um grande atrativo, já que as conversões em oficinas especializadas não saíam por menos de R$ 3.200 e, apesar de muitos kits terem certificação das próprias montadoras, sua instalação era na verdade uma adaptação que, em médio e longo prazos, acaba desvalorizando o veículo.

De qualquer forma, nos classificados da época, um Omega 4.1 com “kit gás” – como era chamado – era destaque entre os anúncios. Bom, o mundo dá voltas e, hoje, os franceses é que correm atrás de alternativas para a inflação dos combustíveis tradicionais – lá, a gasolina e o diesel.

Anuncie seu carro na Mobiauto

“Hoje, o GLP – nosso gás de cozinha – e o ‘superetanol’ E85 – que nada mais é do que álcool com adição de 15% de gasolina –, já respondem por 5% das vendas no mercado doméstico”, conta o jornalista Jean-Michel Normand, que cobre o setor econômico de matriz energética para o “Le Monde”.

A França não está nem entre os dez maiores consumidores de petróleo do mundo. Ocupa a 13ª posição em um ranking liderado pelos Estados Unidos, com um consumo diário de 17,1 milhões de barris, que ainda tem o Brasil na oitava colocação, com 2,3 milhões de barris por dia – dados atualizados do Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP). 

Enquanto os EUA consomem quase 20% de todo o petróleo produzido globalmente, os franceses têm uma fatia que não chega a 2,5% do bolo, mas a conflagração na Ucrânia acelerou a inflação da gasolina no país.

Leia também: Como é a prensa gigante da Tesla que permite produzir carro 3x mais rápido

A escolha pelo gás natural

Kits de conversão custam entre o equivalente a R$ 5.000 e R$ 11.000, mas economia, na ponta do lápis, só vem depois de 30.000 quilômetros

“Ainda é um público bem específico. No caso do GLP, por exemplo, os zero-quilômetro são uma opção para usuários que vivem em subúrbios ou áreas rurais, cuja escolha se fundamenta, única e exclusivamente, na economia”, pontua o diretor de marketing da Dacia francesa, Xavier Martinet.

Lá, o metro cúbico do GLP custa em média 0,90 euro (o equivalente a R$ 4,50), enquanto o litro da gasolina ou do diesel fica na casa dos 2 euros (o equivalente a R$ 10). 

Além do preço mais em conta, outras vantagens do gás são suas emissões 20% menores – no caso, de dióxido de carbono – e o fato de ele ser produzido na própria França – também é importado da Argélia e Noruega – portanto, é imune ao boicote à Rússia. 

A Dacia, líder deste nicho de mercado, tem um bônus de 500 euros (pouco mais de R$ 2.500) para seus modelos que usam GLP, mas a rede de abastecimento acanhada (só 1.500 postos em todo o país), carente de oferta principalmente na região de Paris, acaba desestimulando o comprador. 

Leia também: Montadoras lucram 315% mais na pandemia mesmo vendendo menos carros

Como o leitor deve imaginar, kits de adaptação não são uma gambiarra originalmente brasileira e, na França, há opções tanto para conversão do motor para uso de GLP, que não sai por menos de 2.000 euros (o equivalente a R$ 10.510), e uma “caixa” – como é chamada por lá – para uso do E85, que sai por 1.000 euros (o equivalente a R$ 5.250). 

“Em ambos os casos, o motorista ainda terá que gastar uma quantia que pode variar muito – de 50 a 250 euros, porque se trata de uma taxa municipal – para alterar a matrícula do veículo”, lembra a jornalista Garance Perdigon, do portal “Auto-Plus”, uma das referências em notícias e serviços. 

“Nossa produção fez os cálculos e, no caso do GLP, a economia só começaria depois de 30.000 quilômetros – período em que o investimento será amortizado”, completa. Curiosamente, é o etanol E85 que assegura maior economia para o motorista, na ponta do lápis, mesmo com uma autonomia 25% menor. 

Leia também: VW quer virar megafornecedora de carros elétricos e Ford será 1ª cliente

O crescimento do “superetanol”

Kits de conversão custam entre o equivalente a R$ 5.000 e R$ 11.000, mas economia, na ponta do lápis, só vem depois de 30.000 quilômetros

“Ambos são mais econômicos, mas o consumo com o GLP sobe até 40% em relação à gasolina, compensado pelo custo 55% menor do metro cúbico”, assegura Clement Raoul-Rea, do mesmo portal. O litro do superetanol chega a custar menos de 0,70 euro (o equivalente a R$ 3,50), em algumas regiões francesas, e a Ford comemora sua aposta no combustível alternativo. 

“Nossas vendas de modelos movidos a bioetanol vêm crescendo desde outubro de 2021”, pontua o diretor de relações públicas para França e Benelux, Fabrice Devanlay. “Atualmente, 66% de nossas vendas correspondem a modelos que usam o E85”, acrescentou Devanlay.

No Brasil, os modelos flexíveis foram uma grande sacada para as montadoras. Após quase duas décadas de mercado, pouca gente se deu conta de que, na verdade, os fabricantes adaptaram motores que já operavam com etanol para uso de gasolina ou ambos misturados em qualquer proporção – as linhas de alimentação são as mesmas que os modelos a álcool já usavam.

Na hora de recolher impostos, estes modelos se beneficiam dos incentivos dados ao combustível verde, mas as marcas cobram mais pela tecnologia que permite ao motorista escolher a alternativa mais econômica. 

Leia também: Carros nos EUA darão adeus a volante, pedais e até ao banco do motorista

O problema é que, na prática, seu único benefício é menor carga tributária combinada à maior margem de lucro para a montadora, já que, para o usuário, o preço do etanol nunca compensa sua opção. 

Outra curiosidade francesa é o fato de, lá, o GNV – gás natural veicular, portanto, não confundir com o GLP de que falamos até agora – ser uma alternativa para veículos pesados.  Mais curioso, ainda, é o fato de, neste caso, os ganhos em relação ao diesel não se operam no bolso, mas na redução de até 20% das emissões de gás carbônico e na redução de até 50% da poluição sonora.

“Inauguramos uma estação de abastecimento em La Havre que, junto com Rouen e Paris, constituem o maior ramal fluvial do Rio Sena, que atenderá uma frota de 12 mil caminhões, 24 horas por dia e sete dias por semana”, destacou o presidente-executivo (CEO) da GNVert, um dos braços da NGVA Europa, Jean-Baptiste Furia. 

O grupo, um dos principais desenvolvedores de mobilidade sustentável, foca as zonas industriais e portuárias da região. Na França, a descarbonização dos transportes é uma questão levada a sério por cidadãos, montadoras, órgãos governamentais e de regulação. 

Leia também: Apple terá carro sem volante nem pedais tão revolucionário quanto iPhone

Kits de conversão custam entre o equivalente a R$ 5.000 e R$ 11.000, mas economia, na ponta do lápis, só vem depois de 30.000 quilômetros

Uso de gás natural em outros transportes

E enquanto, aqui no Brasil, o preço do metro cúbico do GNV atinge seu recorde histórico, com um aumento acumulado de mais de 40%, no último semestre, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da Comissão Europeia acaba de publicar seu relatório para os transportes aéreo e marítimo.

O objetivo é incrementar o uso de combustíveis sustentáveis que, hoje, representam menos de 1% em relação aos de origem fóssil. “Ao alinhar toda a cadeia de valor industrial, vamos impulsionar a produção, distribuição e o uso de combustíveis renováveis e de baixo carbono”, pontuou a comissária para transportes, Adina Valean.

Lá, a estruturação do ReFuel EU e FuelEU Maritime será definida daqui a dois meses, em junho, a partir de uma primeira Assembleia Geral que, provavelmente, acontecerá antes de o gigante brasileiro acordar de seu sono eterno em berço esplêndido. 

O triste, diante deste quadro, é atestar que até naquilo em que fomos pioneiros, um dia, sucumbimos ao nosso próprio fracasso…

Imagens: Shutterstock

Este texto contém análises e opiniões pessoais do colunista e não reflete, necessariamente, a opinião da Mobiauto. 

Você também pode se interessar por:

Como a guinada para os carros elétricos será afetada pela guerra na Ucrânia
Como a China comunista fez vendas de carros superluxo baterem recordes
Indústria vive impasse após investir trilhões em carros autônomos
Apple, Sony e Xiaomi correm para fabricar carros elétricos. Vão conseguir? 

Comentários