Por que o Brasil deveria se aliar à China na corrida pelo carro elétrico

Ao mesmo tempo em que a gigante chinesa BYD planeja investir R$ 3 bilhões no país, Tesla, Volkswagen e Mercedes-Benz derrapam em incertezas
HG
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30.11.2022 às 10:25
Ao mesmo tempo em que a gigante chinesa BYD planeja investir R$ 3 bilhões no país, Tesla, Volkswagen e Mercedes-Benz derrapam em incertezas

Ainda existe quem não acredite na virada da eletromobilidade, mas ela já ocorre nos principais mercados do mundo, que são China, Estados Unidos, Europa e Japão. 

Fingir que isso não está acontecendo, enquanto o setor automotivo tem programados investimentos de US$ 626 bilhões (o equivalente a R$ 3,35 trilhões) para os veículos elétricos (EVs), só até 2030, dá no mesmo que esperar uma intervenção extraterrestre capaz de mudar o resultado da eleição presidencial. 

Ou seja, é preciso ser, ao mesmo tempo, cego e muito alienado em relação a cifras. Fato é que chega a hora de o Brasil, a partir de uma nova agenda ambiental, escolher o caminho que pretende percorrer para a eletrificação da frota, somando esforços para a redução das emissões de carbono em nível global.

“A projeção de gastos com energia limpa no segmento automotivo subiu 20%. Estamos avançando rapidamente em direção aos veículos de emissão zero e isso não representa apenas a proteção do nosso clima, mas o desenvolvimento econômico e a geração de novos empregos.”

A fala é do vice-presidente o Fundo norte-americano de Defesa Ambiental (EDF), entidade sem fins lucrativos para questões como aquecimento global, restauração de ecossistemas, oceanos e saúde humana, Peter Zalzal.

De acordo com Zalzal, a eletrificação é um caminho sem volta para as principais montadoras, mas o cenário atual se mostra bem diferente para as gigantes europeias e asiáticas do setor automotivo. A Tesla, do trilionário Elon Musk, segue como a mais prestigiada marca de EVs em nível mundial, mas suas ações acumulam queda de quase 7% e, hoje, têm o menor valor desde 2020. 

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Já Mercedes-Benz teve que reduzir o preço de tabela de seu novíssimo EQS em US$ 33 mil (o equivalente a mais de R$ 175 mil), depois de ele não decolar comercialmente na China, enquanto a Volkswagen adiou em dois anos o lançamento do primeiro EV de seu ambicioso programa “Trinity”, que vai consumir nada menos que US$ 54 bilhões (o equivalente a R$ 288 bilhões) em investimentos.

“As marcas alemãs anunciam metas ousadas de eletrificação para convencer seus investidores de que estão liderando a transição, mas não cumprem o que divulgam. Mercedes-Benz e VW têm um longo caminho a percorrer”, assegura o analista Michael Dean, da Bloomberg Intelligence. 

“A luz vermelha acaba de acender para essas montadoras, que estão despejando recursos para cumprir seus cronogramas de eletrificação em um volume de gastos sem precedentes”, completou. 

A verdade é que só estas duas montadoras estão investindo 100 bilhões de euros (o equivalente a mais de R$ 550 bilhões), na esperança de manterem uma liderança que vai se liquefazendo e na crença de que terão novas fontes de renda digitais.

Seguir os alemães não parece uma boa opção para o Brasil que, mais do que dar seu primeiro passo rumo à eletromobilidade, precisa tomar uma decisão assertiva. 

“Do ponto de vista técnico, em termos de estrutura veicular, não tenho dúvidas de que são fabricantes capazes de produzir excelentes EVs. Mas sobre a complexidade e a qualidade necessárias para fazer frente às marcas chinesas, quando o assunto é a eletrônica dedicada, já não tenho tanta certeza”, pontua o chefe global da divisão de consultoria automotiva da Accenture, especializada em tecnologia da informação, Axel Schmidt. 

“Estamos falando de veículos em que os softwares fazem a grande diferença”, acrescenta. Nunca é demais lembrar que, no caso específico da VW, foi a crise em sua subsidiária de desenvolvimento de softwares, a Cariad, que culminou na demissão do todo-poderoso Herbert Diess – defenestrado em setembro.

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Um gigante que já produz meio milhão de veículos eletrificados

Já do outro lado do mundo, na China, só as exportações de EVs para a Europa fecharão este ano na casa de 90 mil unidades – a Associação Chinesa de Fabricantes de Automóveis (CAAM) reportou um volume de exportações de 500 mil unidades, entre janeiro e outubro, só de modelos de novas energias (BEVs). 

“As marcas chinesas estão consolidando sua posição na Europa e, em 2022, devem alcançar 8% de participação entre os modelos elétricos. Nos próximos dois anos, 800 mil automóveis chineses serão comercializados no Velho Continente”, conta o sócio da área automotiva do escritório alemão da PricewaterhouseCoopers (PwC), segunda maior rede de serviços empresariais do mundo, Felix Kuhnert.

“E enquanto os fabricantes da Grande Muralha estão vendendo cada vez mais EVs na Europa, as gigantes europeias e americanas estão transferindo sua produção para a China. Os chineses desenvolveram e otimizaram seus produtos no mercado doméstico, de modo que, agora, estão exportando EVs acessíveis e de tecnologia inovadora”, segue.

A requalificação da indústria brasileira passa pela conversão do país em um novo polo exportador, mas apenas para o leitor ter uma ideia do descompasso entre o mercado brasileiro e o europeu, chinês ou norte-americano, a BYD, um dos três maiores produtores de EVs do mundo, estima que, em 2025, as vendas de modelos híbridos e elétricos responderão por apenas 10% do bolo nacional – uma previsão otimista, porque, hoje, essa fatia é de 2,4%.

“Estamos no Brasil há dez anos e passamos por muitas mudanças políticas nesse período. Também enfrentamos as flutuações do câmbio e a inflação, mas acho que no longo prazo o país tem suas vantagens. Acredito que a posse do presidente Lula, em 1º de janeiro, representará um novo momento ambiental, ideal para investimos em novas tecnologias”, avalia a presidente da subsidiária Americas da gigante chinesa, Stella Li.

Em outubro, a BYD assinou um protocolo de intenções com o governo da Bahia, visando à produção de EVs na área industrial deixada pela Ford, em Camaçari. A montadora cogita investir R$ 3 bilhões em três linhas de montagens (carros de passeio; caminhões e ônibus elétricos; processamento de lítio para ser usado na China para produção de baterias). 

“Temos um novo governo que deseja incentivar o setor e modernizar a indústria automotiva brasileira. Também temos disponibilidade de matéria-prima para baterias, mas uma decisão que me permita detalhar este plano só deve ser tomada no final de dezembro”, pondera Stella.

Os novos Song Plus (híbrido plug-in) e Yuan Plus (elétrico) são, ao mesmo tempo, iscas jogadas para testar a demanda do mercado nacional, bem como uma espécie de expedicionários que darão subsídios para a tropicalização de uma eventual e futura linha made in Brazil

Ambos desembarcam por aqui no mesmo mês em que o veterano Gol dá seu adeus comovido, quando, na verdade, sua descontinuação é uma excelente oportunidade, nem que seja simbólica, para a indústria nacional sair da Idade de Pedra em termos de eletromobilidade.

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O exemplo da Polônia

Na ex-socialista Polônia, a solução política encontrada para fomentar a indústria automotiva local foi a criação de um programa estatal – parece piada, mas não é. A ElectroMobility Poland (EMP) foi constituída a partir de companhias públicas do setor de energia, há sete anos, como uma solução doméstica para a virada da eletromobilidade. 

Na época, o primeiro-ministro Mateusz Morawieck previu que, “até 2025, o país teria uma frota de 1 milhão de EVs”, o que – é verdade – está muito longe de ser alcançado dentro do prazo previsto. 

Mas o primeiro modelo elétrico deste programa, chamado Izera, está praticamente pronto e terá paternidade chinesa, já que utiliza a plataforma SEA da Geely, que por sua vez é proprietária da Volvo. “É um acordo que permite à Polônia um avanço rápido, abrindo oportunidades no segmento dos EVs”, destaca o diretor executivo da gigante chinesa, Daniel Donghui Li.

A expertise dos chineses na produção de modelos elétricos é tudo que o Brasil precisa para reinventar o setor que foi o mais pujante de sua indústria durante três décadas. 

“A base SEA compreende todas partes mecânicas e eletrônicas que, até agora, eram usadas apenas por marcas do grupo Geely. Portanto, o início da produção do Izera, na fábrica da EMP em Jaworzno, é um passo importantíssimo para a Polônia assumir seu papel na nova indústria automotiva europeia”, acrescentou Li.

O leitor pode estar se perguntando por que o Brasil seguiria o exemplo polonês, que só dará seu primeiro fruto em 2024 e a resposta para esta indagação é simples.

“Um EV totalmente novo será desenvolvido e fabricado, recrutando uma nova força de trabalho que será qualificada, agregando valor à cadeia automotiva local, em que pequenas e médias empresas que atuam como fornecedoras são dominantes”, explica o analista da fundação polonesa para promoção de veículos elétricos, Rafał Bajczuk. 

“Também estamos criando uma nova situação, já que o governo federal assumiu o financiamento de todo o capital social da EMP – de o equivalente a R$ 165 milhões – e a recapitalizou com outros 55 milhões de euros (o equivalente a mais de R$ 300 milhões)”, detalha Bajczuk.

Como se pode ver, a hora de tomarmos um rumo – certeiro – na bifurcação da eletromobilidade, senão, ficaremos presos ao mesmo "Pleistoceno" industrial em que, hoje, estamos aferrados...

Este texto contém análises e opiniões pessoais do colunista e não reflete, necessariamente, a opinião da Mobiauto.  

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