Marcas de carros estão preferindo lucro em vez de qualidade?

Perdas trilionárias e queda na qualidade dos automóveis sem precedentes assolam o mercado automotivo
HG
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28.03.2025 às 21:20 • Atualizado em 25.04.2025
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Perdas trilionárias e queda na qualidade dos automóveis sem precedentes assolam o mercado automotivo

A financeirização consolidada a partir da década de 1990 foi, indiscutivelmente, a maior transformação pela qual o setor automotivo passou, desde que o inventor francês Nicolas-Joseph Cugnot criou o primeiro automóvel propriamente dito, em 1769, ainda no século XVIII e movido a vapor.

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Com a mudança de orientação do capital industrial para o especulativo, gigantes que empregam centenas de milhares trabalhadores em todos os continentes, produzindo milhões de veículos por ano viram seu negócio mudar – mudar, não, mas se transformar por completo.

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“O processo de financeirização é caracterizado pela preferência da valoração do capital, por meio de atividades financeiras, como mais rentável do que a produção fabril”, explica o professor e pesquisador Marcelo José do Carmo, doutor em Engenharia de Produção e coautor de “Financialisation in the Automotive Industry”.

Imerso na bolha negacionista tupiniquim, o brasileiro apaixonado por carros não faz ideia do derretimento que gigantes como Tesla, Volkswagen e Stellantis vêm enfrentando, no exato momento em que seus olhos percorrem estas linhas, não imagina que a qualidade do produto deixou de ser uma prioridade para os fabricantes e muito menos que, como último elo da corrente, é ele – coitado – que banca a remuneração dos acionistas destas companhias.

“O setor automotivo se tornou objeto de aquisições e aumento da participação de bancos, fundos de investimento e instituições financeiras. Há uma enorme pressão dos altos executivos e acionistas por um retorno cada vez maior e essa propensão à maximização do valor para os investidores se tornou a praxe”, acrescenta o coordenador do Núcleo de Estudos em Sociologia Econômica e das Finanças da Universidade Federal de São Carlos, UFSCar, Julio Cesar Donadone.

Na prática, a forma com que fabricantes elevaram margens históricas de lucro na casa de 5% para até 15%, triplicando os ganhos dos acionistas, combina precarização da produção (dos veículos, obviamente), intensificação de atividades financeiras (financiamento e leasing, por exemplo), redução da mão de obra e lançamento de outros “produtos”.

Ocorre que, pelo menos no universo adulto, também chamado de Primeiro Mundo ou de países desenvolvidos, o povão já percebeu o golpe e, numa espécie de retorsão a veículos cada vez piores, está boicotando o lixo. A Tesla Motors, do bilionário Elon Musk, é o maior exemplo do fenômeno que fez seu valor derreter. Em 13 de dezembro, a marca alcançou seu pico de valorização, atingindo US$ 1,24 trilhão para, em exatos quatro meses, despencar para US$ 724,8 bilhões – uma perda de 49% ou de US$ 696 bilhões que, na cotação de hoje, corresponde a R$ 4,04 trilhões!

No caso da Tesla, há um elemento catastrófico que se soma à desgraça financeira: “Musk está arruinando a marca”, avalia o jornalista francês Jean-Michel Normand, setorista de eletromobilidade do jornal “Le Monde”, destacando sua a primeira queda global em vendas, anunciada no final de janeiro. “Símbolo político involuntário, seus EVs, mesmo ofertando ótimo desempenho e gabaritando no quesito ecológico, se tornaram um estorvo sobre rodas desde que o chefão entrou na política norte-americana. A Tesla também reportou uma margem operacional acentuadamente menor, que caiu de 8,2% para 6,2%, em 2024”, lembra Normand. Mas Musk não está sozinho, quando o assunto é perda de valor. 

Stellantis e Volkswagen

A gigante Stellantis, que tinha capitalização de mercado de US$ 87,9 bilhões, há exatamente um ano, hoje vale 2,5 vezes menos, US$ 35,3 bilhões. Trata-se de um derretimento que qualquer adolescente familiarizado com aplicações pela internet compreende muito bem, mas, para quem não acordou do sono negacionista, significa que todas as 14 marcas do grupo, entre elas a Alfa Romeo, a Chrysler, a Citroën, a Dodge, a Fiat, a Jeep, a Maserati, a Peugeot e RAM, além de outras cinco, têm valor inferior ao da indiana Mahindra (US$ 36,4 bilhões), aos chocolates Hershey (US$ 36,5 bilhões), não ficando muito à frente da cervejaria Ambev (US$ 34,8 bilhões).

A Volkswagen também vive uma situação capitular, com queda na sua capitalização de mercado superior a 66%, no mesmo período. O valor do grupo alemão afundou de US$ 184,4 bilhões para US$ 60 bilhões – traduzindo, entre março de 2021 e este mês, o valor da VW caiu de o equivalente a R$ 1,1 trilhão para menos de R$ 350 bilhões; o equivalente ao leitor fazer um depósito de R$ 10 mil, no banco, e ver que só sobrou R$ 3.150 na conta, depois de deixar o dinheiro “investido” durante 48 meses. “A desindustrialização não é uma questão futura, mas do aqui e agora”, pontua o economista Hans-Werner Sinn, ex-presidente do Instituto Ifo de Pesquisa Econômica. “E este é o último sinal de alerta”.

Apoiando a premissa básica de que a valorização do capital é mais eficiente por meio da lógica financeira, a introdução do princípio da maximização do valor do acionista (MSV) se tornou um corolário. “A transição do conceito de reter recursos e reinvestir lucros para uma ideologia neoliberal, de periodicamente distribuir esses ganhos aos acionistas e dirigentes, deixou o aspecto industrial em segundo plano”, explica o professor Marcelo José do Carmo. O resultado prático, em 15 anos, foi um salto médio de até 500% na remuneração dos CEOs, de 145% nos lucros e de 70% nos salários dos colaboradores, enquanto a capitalização de mercado da montadora cresceu apenas 5%.

Por outro lado, não se trata de imaginação ou reacionarismo e basta o leitor conferir, ano a ano, o relatório do “Initial Quality Study SM (IQS)” do instituto J. D. Power sobre problemas com automóveis novos para conferir o declínio contínuo na qualidade. “A ampla gama de problemas de qualidade na indústria automotiva é um fenômeno sem precedentes, em 37 anos de história do nosso estudo”, alerta o diretor sênior da consultoria, Frank Hanley.

“A baixíssima qualidade de certos itens, de simples porta-copos a sistemas de infotainment, resulta em problemas e, diante da redução da mão de obra, as montadoras recorrem a novos softwares para apressar o lançamento de novos modelos e versões. E por mais empolgantes que sejam as novas tecnologias, a verdade é que, como produtos, os 0 km não vêm satisfazendo os consumidores”, conclui Hanley.

Este texto contém análises e opiniões pessoais do colunista e não reflete, necessariamente, a opinião da Mobiauto.

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