O estranho conceito do Ford Focus que usava um 2.0 turbo de 227 cv em 1992
Houve um tempo em que os salões do automóvel eram a grande vitrine da indústria automotiva. Feiras como a bienal brasileira que acontece em São Paulo e que promete retomar sua trajetória neste ano, dando fim ao hiato que se estende desde 2018, foram palco preferencial para os principais lançamentos comerciais das marcas globais, além de uma espécie de clínica que media a reação do público às tendências para o futuro, materializadas em carros-conceito.
Apesar de a grande maioria destes protótipos jamais ganharem as linhas de montagem, os carros-conceito alimentavam a imaginação dos apaixonados por automóveis, criando nas massas uma expectativa de futuro que, na prática, nunca se materializava.
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Uma das provas mais contundentes deste instrumento de manipulação da opinião pública é o esquecido Ghia Focus Concept, apresentado pela Ford durante o Salão de Turim de 1992, um roadster de estilo avançado, mas do qual só se aproveitou o nome para batizar o médio-compacto homônimo lançado seis anos depois.
“Não estamos diante de um carro, mas de uma obra de arte”, resumiu ninguém menos que Giorgetto Giugiaro, criador das linhas de mais de 200 automóveis e considerado por muitos como o maior designer automotivo de todos os tempos, ao observar o Ghia Focus Concept naquela oportunidade, em Lingotto.
O protótipo que o leitor vê nas imagens, na verdade, não tinha absolutamente nada a ver com o Focus comercial – sucesso de vendas dos Estados Unidos à China e modelo mais vendido do mundo, entre 1999 e 2004. Era, apenas e tão somente, um Escort RS Cosworth com entre-eixos encurtado, do qual também herdou toda parte mecânica.
Portanto, tanto o motor turboalimentado 2.0 litros 16V de 227 cv, trabalhado pela mítica Cosworth inglesa, quanto a tração integral permanente jamais foram cogitadas para o futuro médio-compacto. Sua carroceria trazia uma orientação de estilo batizada “biodesign”, em alusões aos contornos orgânicos e à seção frontal aracnídea, mas se ilude quem supõem que a Ford esculpiu o aço com o mesmo apuro de um Michelângelo.
Sua carroceria era feita em fibra de vidro e o conjunto pesava 958 kg. Então, o modelo conceitual acelerava de 0 a 100 km/h em 5 s e atingia a velocidade máxima de 240 km/h.
Com 4,15 metros de comprimento, o Ghia Focus Concept era apenas 2 cm menor que o hatchback lançado na Europa em julho de 1998. Mas tanto sua largura de 1,79 m (9 cm maior) quanto sua altura de 1,22 m (22 cm menor) esquadrinhavam um automóvel muito diferente da primeira geração do Focus, que estreou a plataforma C170, enquanto o carro-conceito ainda usava a antiga base CE14, que remonta à década de 80.
Também os enormes – para a época – pneus, com medidas 225/45 na frente e 255/40 atrás, ambos montados em rodas aro 18 polegadas, jamais equiparam nem a versão SVT (norte-americana) do modelo de produção, de 170 cv.
E por falar em potência, o Focus real só teria um motor de mais de 225 cv a partir de 2005, quando já estava em sua segunda geração.
New Edge
O famoso estilo ‘New Edge’ da Ford, que deu forma ao Ka, ao próprio Focus, ao Mondeo e até mesmo ao Taurus não é percebido no carro-conceito de 1992, nem se investigado com uma lupa, até porque ele só veio à luz três anos depois, com o superlativo GT90.
“A Ford foi conhecida, nas suas primeiras décadas, como produtora de automóveis populares, ficando para trás de Chrysler e da General Motors neste campo. O primeiro carro-conceito da marca só apareceu em 1953, com o X-100, mas os designers norte-americanos levaram tempo para criar um ‘modelo dos sonhos’, como os chamamos”, conta o jornalista Chris Rees, autor de “Concept Cars, an A-Z guide to the world's most fabulous futurist cars”. O salto qualitativo só veio mais de duas décadas depois. “Nos anos 70, a Ford comprou a Carrozzeria Ghia, um estúdio italiano que passou a ditar as tendências da marca”, acrescentou.
O Ghia Focus Concept tinha apenas dois lugares e interior em couro, com destaque para o painel “flutuante”, que combinava linhas curvas com mostradores clássicos, lembrando os relógios de parede. A pedaleira seguia a mesma orientação, contrastando com o volante e a alavanca de câmbio com acabamento em madeira.
Como todo carro-conceito, o Focus trazia contradições absurdas, mas que, à época, não eram tão percebidas. “Visto por fora, os estabilizadores que lembravam barbatanas de uma baleia, as cordas de aço que protegiam as laterais e a traseira em forma de bolha, além do escape centralizado, disfarçavam qualquer contrassenso”, avalia Rees.
Quando esta única unidade do Ghia Focus Concept foi leiloada, em 2002, por US$ 1,1 milhão, estimou-se que seriam necessários quatro anos de vendas da versão comercial, para a Ford lucrar tanto com o modelo.
Fato é que, para muito além de ter ficado apenas no projeto, o carro-conceito cumpriu seu papel de manter a atenção da mídia, criar nos consumidores uma expectativa positiva e uma imagem de vanguarda, diante da concorrência. Em outras palavras, serviu muito bem para cevar a animália...
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Jornalista Automotivo