Como o hidrogênio pode salvar o carro elétrico de um fracasso retumbante

Até 2030, mercado anual de células a combustível chegará a R$ 250 bilhões; caminhão movido a hidrogênio, nos EUA, tem custo operacional 5% inferior ao de outro, elétrico, equivalente em capacidade
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18.11.2022 às 14:10
 Até 2030, mercado anual de células a combustível chegará a R$ 250 bilhões; caminhão movido a hidrogênio, nos EUA, tem custo operacional 5% inferior ao de outro, elétrico, equivalente em capacidade

Em seu livro “A Ilha Misteriosa”, de 1874, o escritor Júlio Verne preconizava que “um dia, a água será empregada como combustível”. Para ele, o hidrogênio e o oxigênio proveriam uma fonte inesgotável de energia, no futuro. Bom, o futuro chegou e é a eletromobilidade que domina a pauta automotiva. 

Mas o hidrogênio deixou o campo da ficção e, para muitos especialistas, ele ainda é visto como uma matriz abundante e livre de emissões. “Posso afirmar que, finalmente, está acontecendo”, assegura o gerente de engenharia de células a combustível da Bosch, Matt Thorington. 

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Hoje, nos Estados Unidos, que é o segundo maior mercado do mundo, existem apenas 54 postos de abastecimento para automóveis movidos a hidrogênio. “É óbvio que, para alcançarmos viabilidade econômica em relação a este combustível, é necessário formarmos uma base de usuários, mas já temos um investimento de US$ 590 milhões (o equivalente a R$ 3,14 bilhões) programado para este segmento, até 2030”, acrescentou o executivo.


A eletrificação é mesmo a solução?

 Até 2030, mercado anual de células a combustível chegará a R$ 250 bilhões; caminhão movido a hidrogênio, nos EUA, tem custo operacional 5% inferior ao de outro, elétrico, equivalente em capacidade

Até 2030, mercado anual de células a combustível chegará a US$ 39,6 bilhões (o equivalente a quase R$ 250 bilhões), em nível global, mas muitas pessoas ainda não se dão conta da urgência que orienta a virada da eletromobilidade – o setor de transportes é maior poluidor do mundo, respondendo diretamente por 27% das emissões que provocam o efeito estufa. 

“Hoje, os veículos elétricos (EVs) são vistos pelos governos como a solução imediata para o problema ambiental, mas isso não basta para a formação de um novo e inadiável ecossistema”, pondera a analista de mobilidade da Ernst & Young, um dos maiores grupos de serviços profissionais do mundo, Kristin Ringland.

Nos EUA, há apenas dois modelos movidos por célula a combustível à venda: Toyota Mirai e Hyundai Nexo. E nenhum deles pode ser considerado um automóvel de grande produção, até porque suas frotas circulantes, somadas, não ultrapassam a casa das 15 mil unidades – sua grande maioria roda na Califórnia. 

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O que pouco se comenta é que, no longo prazo (a partir de 160 mil quilômetros rodados), os modelos a hidrogênio são mais econômicos, na ponta do lápis, que os híbridos plug-in. “Há uma crença de que os híbridos plug-in são quase tão eficientes quanto os modelos 100% elétricos, mas isso não é verdade, porque eles não conseguem reduzir as emissões em mais do que 20%. 

 Até 2030, mercado anual de células a combustível chegará a R$ 250 bilhões; caminhão movido a hidrogênio, nos EUA, tem custo operacional 5% inferior ao de outro, elétrico, equivalente em capacidade

Na verdade e em condições reais, este percentual fica na casa de 5%”, pontua o pesquisador associado do grupo de Ciência Aplicada à Sustentabilidade (ASS) do Instituto – berlinense – de Estudos sobre Bens Comuns Globais e Mudança Climática (MCC), William F. Lamb.

A afirmação que pode surpreender o leitor, porque na contramão dos mercados norte-americano, europeu e chinês, mercado brasileiro segue aferrado ao passado, cobrando valores cada vez mais altos por automóveis equipados com motores a combustão interna. 

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Pior, o Brasil virou o mercado preferencial para desova de híbridos, importados de países onde estão em baixa e vendidos, aqui, a preço de outro – represando, tecnologicamente, a indústria nacional. 


Carro a hidrogênio, uma arma contra o aquecimento global

Mas há países onde a preocupação é com o futuro e, neles, há um consenso de que os elétricos e os modelos a hidrogênio terão que somar forças para que a meta de zerar as emissões de carbono, até 2050, seja alcançada. 

“Não enxergamos isso como uma possibilidade, mas uma necessidade”, sentencia o gerente de programas de Tecnologias de Células de Hidrogênio e Combustível do Laboratório Nacional de Los Alamos, nos EUA, Rod Borup. 

“Temos pesquisado várias soluções, desde 1977, quando foi criado o Departamento – norte-americano – de Energia. É isso e ponto final”, afirma o colega de Borup, o cientista Byron McCormick, um dos criadores do Laboratório de Los Alamos, que coordenou pesquisas com energias solar, eólica, baterias e células a combustível, desde a década de 70, trocou de lado no balcão e criou o Centro de Propulsão Alternativa da General Motors (GM), focado no hidrogênio, isso em 2009. 

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“O hidrogênio é o elemento mais abundante no universo e emite apenas água, depois de queimado, tornando-se um elemento central na luta contra o aquecimento global”, avalia McCormick, hoje aposentado. 

Ele destaca um ponto importantíssimo desta matriz energética, também pouquíssimo conhecido: “O que quase ninguém sabe é que nem todo hidrogênio é produzido da mesma maneira e cada tipo é rotulado com uma cor. Os mais comuns são o hidrogênio preto ou marrom, o cinza, o azul e o verde”.
 

Nem todo hidrogênio é limpo 

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Os hidrogênios preto e marrom são capturados do carvão ou linhita – que é uma forma de produção bastante nociva ao meio ambiente, segundo o Fórum Econômico Mundial (WEF). 

O hidrogênio cinza é produzido a partir de metano ou gás natural em um processo chamado reforma a vapor, gerando gases que causam o efeito estufa, enquanto o azul, também produzido a partir da reforma a vapor, consegue uma redução de até 80% na emissão de carbono deste processo. 

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Já o hidrogênio verde, produzido por eletrólise, é o único considerado efetivamente limpo – na verdade, o mais limpo possível. Ocorre que, infelizmente, este último tipo responde por uma porcentagem mínima da produção atual.

 

No Brasil, biodiesel em queda

No Brasil, a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) aponta que, seguindo na contramão dos países desenvolvidos, o setor nacional de transportes vai responder por 51% do consumo de gasóleo (Diesel), em 2031, aumentando sua dependência do combustível fóssil. 

Pior, o Plano Decenal de Energia da EPE aponta que a participação do biodiesel nesta matriz caiu de 14% para 10%, neste ano. Parecem dados soltos, quando o assunto é célula a combustível, até porque até o leitor mais bem informado há de convir que, no geral, esta tecnologia é vista como uma solução para automóveis de passeio e comerciais leves, o que é um erro. 

“O hidrogênio e os propulsores de célula a combustível são vocacionados para o transporte marítimo e ferroviário, sendo uma opção potencial para o transporte rodoviário de longas distâncias, principalmente em relação à densidade de energia”, explica o diretor executivo do Conselho Norte-Americano de Eficiência de Frete (NACFE), Michael Roeth.

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Ele conta que os pacotes de baterias são muito pesados, implicando na redução da capacidade de carga de caminhões e, consequentemente, impactando nos lucros dos transportadores. “Nos Estados Unidos, os veículos pesados respondem por 26% do combustível fóssil consumido no país e o custo operacional de um caminhão movido a hidrogênio é 5% inferior ao de outro, elétrico, equivalente em capacidade”, compara Roeth.

Nos EUA, existem 6.000 caminhões a hidrogênio em circulação. “Isso, sem falar no ganho de 15% em relação à capacidade de carga, nas rotas com 560 quilômetros ou mais. E o aumento nos preços dos combustíveis fósseis ainda é uma variável substancial, que os transportadores levam muito em conta”, explica o executivo.

O fato é que os elétricos são uma excelente alternativa para aplicações de curtas distâncias, como o transporte individual. “Hoje, há um consenso de que os motores elétricos vão substituir os de combustão interna, nos veículos leves, enquanto as células a combustível (hidrogênio) substituirão os propulsores de ciclo Diesel”, compara o cofundador da startup Pajarito Powder, que produz eletrocatalisadores e suportes para células de combustível e eletrolisadores para a Hyundai, Tom Stephenson. 

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“No Japão, o Toyota Mirai vendeu cerca de 4.200 unidades, desde 2014, enquanto na Coreia do Sul, o Hyundai Nexo vendeu 8.500 unidades, entre 2020 e 2021. São números tímidos, mas nenhuma destas montadoras perdeu o apetite pelo hidrogênio e a Hyundai terá versões de célula a combustível para toda a sua linha de veículos comerciais, até 2028, com um sistema de próxima geração”, afirma Stephenson.

A gigante sul-coreana prepara soluções de células a combustível para caminhões, trens e embarcações marítimas, enquanto a Toyota inicia uma parceria com a BMW para desenvolvimento e produção de um modelo a hidrogênio, que tem previsão de lançamento já para 2025. 

A Toyota também está trabalhando em ônibus com células a combustível, testando caminhões Classe 8 desenvolvidos em conjunto com a Kenworth, em Los Angeles, e veículos de serviço médio com Isuzu e a Hino Motors. Já a Hyundai põe em prática o plano de investimento de US$ 70 bilhões (o equivalente a mais de R$ 380 bilhões), anunciado em dezembro de 2021.

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“Híbridos são marketing”

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“Nosso foco em várias frentes parece, para muita gente, uma decisão curiosa, principalmente porque a maioria dos concorrentes está focada nos elétricos. Mas preferimos uma abordagem diversificada para a transição energética e tecnologias diferentes podem atender melhor a segmentos e geografias distintas”, comenta o presidente-executivo (CEO) e cientista-chefe do Toyota Research Institute, Gill Pratt. 

Ele completa esclarecendo que ainda não foi encontrada a melhor alternativa e que acredita que no futuro, os modelos com célula a combustível terão papéis complementares e não serão, necessariamente, concorrentes diretos um do outro: “Humildemente, digo que não temos uma resposta definitiva e exploramos até mesmo motores de combustão interna a hidrogênio”, reconhece Pratt. 

“Chegaremos no ponto em que as forças de mercado serão capazes de, realmente, ditar as decisões dos consumidores a esse respeito, mas, até lá, iremos além da concorrência e veremos as oportunidades comerciais que surgem do uso de ambas as tecnologias”, pondera Tom Stephenson, da startup Pajarito Powder. 

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“Assim como as energias solar e eólica foram a bola da vez, na década passada, tudo indica que o hidrogênio é a matriz energética do futuro. E não podemos esquecer que a atividade de capital de risco relacionada ao hidrogênio atingiu um recorde de quase US$ 2 bilhões (o equivalente a mais de R$ 10 bilhões), em 2021. Neste ano, superaremos esta cifra, mesmo sem uma infraestrutura como ingrediente”, analisa Stephenson.

Já que é impossível tomar o atraso brasileiro neste setor como exemplo, voltemos aos EUA, onde, hoje, existem 48.148 estações de carregamento de veículos elétricos em operação – os dados são do Centro de Combustíveis Alternativos do Departamento de Energia (DOE). 

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Lá, esta infraestrutura está crescendo rapidamente, enquanto os postos de abastecimento de hidrogênio estacionaram nos 54 pontos que mencionamos no início deste texto. “Não há como negar que, em termos de infraestrutura para hidrogênio, não temos nada de relevante”, reconhece a analista de mobilidade da Ernst & Young, um dos maiores grupos de serviços profissionais do mundo, Kristin Ringland.

De acordo com ela, esta defasagem é um fator prático que impulsiona os elétricos. “De qualquer forma, seja dedicado ao setor de transportes ou com propósitos mais amplos, como a mobilidade individual, o DOE está lançando as bases infra estruturais para uma maior oferta do hidrogênio. 

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Depois de construir 500 mil estações de recarga para veículos elétricos, o departamento está gastando simultaneamente US$ 8 bilhões (o equivalente a R$ 43,6 bilhões) para criar dez grandes centros, ‘hubs’, de abastecimento de hidrogênio em locais estratégicos para fabricantes, operadores, consumidores e empreendedores”, pontua Kristin.

Se o setor automotivo levou 20 anos para chegar onde chegou, com os elétricos, é possível que demore o mesmo tempo para que o hidrogênio se popularize. “Existem muitos combustíveis fósseis que podemos continuar queimando. Mas acho que o objetivo é nos livrar deles”, declarou a diretora de eletrificação da Energy Innovation, consultoria em políticas energética e climática, Sara Baldwin. 

“Independentemente das emissões, o hidrogênio está crescendo e a União Europeia vê as células a combustível uma alternativa para reduzir sua dependência do petróleo russo. As pessoas falam sobre o fim do petróleo e acho que não entenderam que o foco é o fim dos motores a combustão, é dar fim a uma matriz energética que vem desde a época das cavernas”, discorre Baldwin.

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Apesar de todo o seu potencial de emitir nada além de água, o hidrogênio ainda tem um grande obstáculo no caminho para uma economia de carbono zero. É que assim como os elétricos dependem de eletricidade gerada em usinas que queimam carvão, as vantagens do hidrogênio são anuladas quando ele é obtido pela queima de combustíveis fósseis. 

De acordo com o WEF, hoje, o hidrogênio verde, produzido apenas com energia renovável, representa só 0,1% do total produzido. “Como se vê, precisaremos de décadas de pesquisa e desenvolvimento para tornarmos o hidrogênio verde um produto de massa”, avalia o pesquisador William F. Lamb. 

Mas uma coisa é clara para ele: “Neste cenário sísmico, os híbridos – puros ou plug-in – são apenas uma jogada de marketing”, sentencia Lamb, no estudo “Discursos Sobre o Atraso Climático” publicado pela Universidade de Cambridge.

Este texto contém análises e opiniões pessoais do colunista e não reflete, necessariamente, a opinião da Mobiauto.

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