Como a VW criará carros elétricos nacionais movidos a etanol

Projeto da fabricante com a Unicamp estuda uma célula de combustível com etanol, incluindo um segredo para fazer combustível render o dobro
LF
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04.04.2022 às 18:10
Projeto da fabricante com a Unicamp estuda uma célula de combustível com etanol, incluindo um segredo para fazer combustível render o dobro

A rota da eletrificação parece não ter mais retorno. Mesmo países que não estiverem preparados, caso do Brasil, ver-se-ão em algum momento forçados a abrigar carros elétricos de modo mais perene em suas frotas. 

Pensando nisso, algumas fabricantes vêm tentando dar passos à frente em relação a rivais, usando como trunfo um recurso já bem difundido em nosso país: o etanol. Em princípio, parece não haver conexão entre o combustível derivado da cana-de-açúcar e carros elétricos, mas, sim, é possível ligá-los. 

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A Nissan foi a primeira a dar um passo, anunciando alguns anos atrás o desenvolvimento de um sistema chamado SOFC (sigla em inglês para Célula de Combustível de Óxido Sólido).

No ano passado, a Volkswagen divulgou um projeto em parceria com a Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) no mesmo sentido: criar um sistema de célula de combustível usando o etanol como base para mover veículos elétricos, de modo que o conjunto seja viável para produção e comercialização em escala industrial.

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Funcionamento e vantagens do SOFC

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Toyota Mirai, o primeiro carro de produção movido a eletricidade com célula de combustível

Para entender como funciona a célula de combustível de óxido sólido, a Mobiauto conversou com Gustavo Doubek, docente da Escola de Engenharia Química da Unicamp e um dos responsáveis pelo desenrolar do projeto junto com a VW. Ele nos explicou como funciona e quais as vantagens da tecnologia.  

“Estamos ainda na etapa inicial de desenvolvimento. Por isso, ainda é muito cedo para falar de resultados e dados. [O grande desafio é] tentar transferir os conceitos teóricos a um sistema que seja viável para o setor produtivo, que possa ser produzido industrialmente em larga escala com custo acessível”, conta o professor.

O SOFC consiste em uma cadeia na qual o combustível presente na célula passa por um processo reativo que resulta em energia elétrica. O tipo mais comum, já presente em carros de produção como o Toyota Mirai, leva hidrogênio.

Para países como o Brasil, a ideia de ter uma célula com etanol é uma solução adaptada para aproveitar um combustível já difundido em nosso mercado. Aproveitaria, também, a estrutura de abastecimento já espalhada por todo o país, sendo menos custosa para governo e empresas, e menos impactante para os consumidores. 

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O acordo de parceria firmado entre a VW e a Unicamp

Afinal, bastaria abastecer a célula com etanol da mesma forma que se faz com o tanque de um carro a combustão atual. Além disso, dispensaríamos o investimento em produção local ou importação de baterias, visto que um carro elétrico movido a SOFC não precisa de grandes bancos de bateria para funcionar: sua energia virá do etanol convertido em eletricidade.

Tal conversão pode se dar de duas maneiras, explica Doubek: a reação direta de etanol com água ou a transformação de etanol em hidrogênio e, depois, em eletricidade. “Optamos pelo segundo caminho, porque aumenta a capacidade de conversão de energia”, diz. Em outras palavras, ao fazer o etanol virar hidrogênio antes de eletricidade, é possível gerar mais energia elétrica com um mesmo de combustível.

O método é relativamente simples: o etanol vai da célula de combustível para um reformador, junto com água. Lá, os elementos passam por reações químicas que geram hidrogênio, água, CO (monóxido de carbono) e CO² (dióxido de carbono). O hidrogênio, então, é convertido em eletricidade, enquanto os demais elementos são expelidos.

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Plataforma da Toyota com célula de combustível no assoalho do veículo

O segredo para fazer etanol “render o dobro” e produzir em larga escala

“O maior desafio é otimizar a relação para gerar mais potência e quantidade de energia elétrica gerada”, acrescenta Gustavo Doubek.

É aí que entra em cena uma solução que a Volkswagen e a Nissan tentarão implantar em seus possíveis carros elétricos movidos a etanol no Brasil. Como dissemos, a reação química se dá em um reformador, através de um processo chamado exotérmico (reações ou mudanças de estado físico que liberam calor).

Células de combustível costumam ser aliadas a reformadores externos. Cada reformador, assim, precisa ter capacidade condizente com o tamanho da célula. O que os pesquisadores da Unicamp pretendem fazer é criar células dotadas de microrreformador dentro de si. Com isso, tentarão matar dois coelhos em uma cajadada só. 

Primeiro, terão um dispositivo padronizado e modular, apto a ser usado por qualquer tipo de modelo. Em vez de ter células e reformadores de volumes e capacidades diferentes para cada tipo de veículo, bastará incluir uma ou mais células do mesmo tipo a depender do modelo: apenas uma para um hatch compacto, duas para um sedan ou SUV médio e três para uma picape de porte maior, por exemplo.

“O reformador e a célula seriam sempre os mesmos, o que daria um ganho muito importante em termos de escalas e custos”, esclarece o professor.

Ao mesmo tempo, um microrreformador interno permite que se reaproveite o calor dissipado na reação para gerar mais energia, numa lógica parecida com a do reaproveitamento da energia cinética das frenagens usada para a recarregar as baterias de carros elétricos com recarga externa.

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Banner da Nissan explica como funciona o SOFC com o reformador embutido na célula de combustível

“Só teremos números de eficiência reais daqui a dois ou três anos”, enfatiza Doubek. É nesse prazo que os pesquisadores esperam ter o projeto aprovado e protótipos em escala piloto para aferição prática dos estudos. “[Esses protótipos nos] Darão segurança maior sobre construção e operação da célula de combustível”, completa.

O que o engenheiro já pôde abrir é que deve ser possível dobrar o aproveitamento energético do etanol em relação ao que o combustível rende hoje em um carro flex. “Um motor a combustão comum hoje tem entre 25% e 30% de eficiência [térmica]. Com esta célula de reformador interno, é possível passar de 50%”, calcula.

Ou seja, enquanto um propulsor térmico convencional desperdiça mais de 70% da energia gerada pelo etanol ao longo do processo de combustão e tração, um veículo elétrico SOFC com microrreformador interno conseguiria aproveitar mais da metade dessa mesma energia, praticamente dobrando a eficiência térmica.

Na prática, é como se um compacto elétrico movido a célula de combustível fosse capaz de fazer 25 km/l na cidade convertendo etanol em eletricidade, enquanto um modelo equivalente atual com motor flex alcança 12 ou 13 km/l de autonomia.

“Claro que, para falar em números ou percentuais absolutos, tudo vai depender da potência demandada. Em um motor a combustão, quanto mais se exige de um motor ou se extrai de potência, maior será o consumo de combustível. Em um elétrico, a lógica é a mesma”, completa o especialista.

Outro ponto ainda a ser investigado, de acordo com o pesquisador, é se dará para aproveitar a energia térmica dissipada pelo radiador do carro (que ainda existirá, sendo responsável por resfriar os componentes da motorização elétrica), mesmo que parcialmente, a fim de aquecer o próprio reformador e otimizar ainda mais o aproveitamento de energia.

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Elétricos movidos a etanol: o caminho mais fácil?

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O professor Gustavo Doubek

Gustavo Doubek conta que seu departamento na Unicamp decidiu aceitar a parceria com a VW por acreditar que a célula de combustível pode ser um caminho viável para a popularização do carro elétrico no Brasil.

Não temos uma expertise muito grande para produzir baterias de íons de lítio. Países como Estados Unidos e China já são muito fortes nessa área. A produção é muito cara e só se justifica com alto volume. Dificilmente teríamos capacidade para competir e ficaríamos dependentes de importação”, comenta.

“Ao mesmo tempo, o Brasil é polo exportador de biocombustíveis como o etanol. Que, de um modo geral, é um combustível bem limpo. Não existe um combustível 100% limpo, mas [o etanol] chega perto disso. Há um grande volume de captura de C0² no plantio da cana, deixando o balanço em praticamente zero”, comenta. 

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Maquete virtual do futuro Centro de P&D de Biocombustíveis que está sendo criado pela VW

O engenheiro concorda que fatores como o combustível usado pelos veículos que participam do processo de plantio, colheita e distribuição da cana e do etanol, bem como a origem da energia elétrica usada em todo o processo de produção do etanol, devem ser levados em conta. Mas também acredita em soluções limpas para todas as etapas da cadeia.

“O SOFC tem um caminho muito mais simples [de aplicação] em caminhões e máquinas agrícolas, melhorando ainda mais a eficiência em emissões. Se conseguirmos fazer toda a cadeia de veículos usados no setor alcoolsucraleiro ser movida por eletricidade vinda do etanol, teremos um processo ainda mais eficiente”, raciocina.

O professor completa: “O Brasil tem uma situação privilegiada, com altíssima presença de luz solar em locais que não demandam desmatamento e solo propício. O potencial é enorme. São questões que fazem sentido aqui e não na Europa, por exemplo, que possui um clima totalmente diferente”. 

“Não existe solução única para eletrificação. Temos uma oportunidade muito importante nessa transição energética, inclusive para nos tornarmos polo exportador de combustível e tecnologia para locais como Índia ou África. Mas precisamos investir e desenvolver fornecedores qualificados aqui desde já”, finaliza.

Do lado da VW, a fabricante alemã inaugurará em setembro deste ano um Centro de Pesquisa & Desenvolvimento em São Bernardo do Campo (SP) dedicado a pesquisas de soluções de motorização eletrificada usando biocombustíveis como o etanol.

Imagens: Divulgação, Shutterstock e Acervo Pessoal/LinkedIn

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