Carlos Ghosn: de ícone do setor automotivo a procurado pela Interpol

Conheça os detalhes do escândalo de quase R$ 1,2 bilhão envolvendo o ex-CEO da Nissan, sua fuga cinematográfica do Japão e sua boa vida, agora, no Líbano
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28.07.2021 às 15:52 • Atualizado em 23.12.2021
Conheça os detalhes do escândalo de quase R$ 1,2 bilhão envolvendo o ex-CEO da Nissan, sua fuga cinematográfica do Japão e sua boa vida, agora, no Líbano

Por Homero Gottardello

Há exatos oito anos, o então presidente da Renault-Nissan Alliance, Carlos Ghosn, era uma espécie de “papa” entre os executivos das gigantes do setor automotivo. 

Ele comandava um dos maiores grupos do segmento, que nascera da junção entre uma das maiores montadoras japonesas e a mais tradicional das marcas francesas, um fabricante (a Renault) em que o controle estatal ainda hoje se faz presente, com uma participação nada desprezível de 15% do controle acionário. 

Ghosn ganhou notoriedade por combinar a cultura nipônica ao existencialismo francês, desde o chão de fábrica até a Champs Élysées, criando uma nova filosofia dentro da indústria. Já naquela época, ele previa um futuro muito parecido com a atualidade, desenhando uma estrada que, agora, parece ter mão única. 

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“Sou otimista, em relação aos carros elétricos. Estou convencido de que esta é a tecnologia do futuro e um importante mercado, que irá representar pelo menos 10% da oferta”, disse ele, durante sua entrevista coletiva no Salão de Frankfurt de 2013, enquanto antecipava uma mudança na relação entre homem e máquina.

“Até 2020, teremos veículos autônomos capazes de reconhecer os sinais de trânsito e detectar a presença de pedestres à frente. Logo, esta tecnologia será confiável e acessível”, sentenciava.

Retrocedendo mais um pouco, Ghosn ocupou o posto de chefão do grupo Alliance tendo o Brasil como segundo maior mercado mundial da Renault, perdendo apenas para a França. Há dez anos, a marca tinha 6,5% de participação no país – hoje, tem 6,9% - e o executivo investia pesado em produção e imagem. 

“Queremos nos colocar na primeira posição no ranking de satisfação dos clientes, alcançando uma fatia de 8%. Vamos ampliar nossa fábrica de São José dos Pinhais (PR), aumentando a capacidade de produção para 380 mil unidades anuais, até 2013”, planejava. 

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Conheça os detalhes do escândalo de quase R$ 1,2 bilhão envolvendo o ex-CEO da Nissan, sua fuga cinematográfica do Japão e sua boa vida, agora, no Líbano

(Imagem: Lev Radin/Shutterstock)

Com as marcas “na defensiva”, diante da estagnação do mercado europeu, Ghosn ganhou status de verdadeiro salvador da pátria por aqui. E não lhe faltavam admiradores dos mais fervorosos.

Nascido em Porto Velho (RO), Carlos Ghosn também tem nacionalidades francesa e libanesa, um pedigree que encantou a imprensa. 

Sob sua batuta, a Renault investiu pesado em comunicação e marketing, aumentando o poder de sedução ao mesmo tempo em que substituía a linha de produtos originários da França (da Renault francesa) por modelos oriundos da subsidiária Dacia. 

Enquanto seus automóveis trocavam o ar parisiense pelo baixo custo romeno, o jornalismo especializado, embevecido pelo champanhe e pelas verbas publicitárias, tratou a precarização da gama como uma fórmula mágica que o Brasil havia encontrado para reduzir custos ao mínimo e elevar os lucros ao máximo.

Aqui, cabe lembrar um fato muitíssimo importante: quando Ghosn salvou a Renault da bancarrota, no início dos anos 2000, ele o fez ganhando do jornal britânico “The Telegraph” o apelido de “Matador de Custos” (‘Le Cost Killer’). 

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Para segurar prejuízos que chegavam a US$ 20 bilhões, na época, ele criou um plano que, só no Japão (a parceria estratégica com a Nissan se inicia, em 1999), fechou cinco fábricas e suprimiu 21 mil postos de trabalho diretos. Uma agenda que, ao mesmo tempo, maravilhava economistas e aterrorizava funcionários.

Uma prisão, vários escândalos

Tudo seguia maravilhosamente bem para Ghosn quando, em novembro de 2018, o executivo foi preso no Japão por fraude fiscal – que, lá, dá cadeia. A Nissan levou apenas três dias para demiti-lo e o destituir de qualquer pompa e circunstância, mostrando sua completa desaprovação. 

No pacote do escândalo de US$ 18 milhões, imóveis no Rio de Janeiro e Beirute, e uma dolorosa conta de US$ 80 milhões que levou o figurão para uma espécie de “Carandiru” de Tóquio. 

Os defensores tentaram, de todas as formas, livrar a barra do benfeitor, mas àquela altura ele já estava trancafiado em um cubículo – dá para imaginar o espaço na cela de um pavilhão penitenciário em uma cidade com a densidade demográfica da capital japonesa... 

Restava saber se, no Japão, rico come cana de verdade ou se, a exemplo da “Terra Brasilis”, acaba dando um jeitinho de ir para a prisão domiciliar – e foi isso que ocorreu, no final de abril de 2019.

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Resumindo o caso, Ghosn foi detido por subnotificar seu próprio salário ao Fisco japonês e, também, por usar fundos da companhia para bancar despesas pessoais. No Brasil, este tipo de prática costuma alçar executivos aos postos mais prestigiados do mercado, mas, na terra dos samurais, a coisa é diferente. 

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(Imagem: Dekitateyo/Shutterstock)

Aliás, não é só por lá, já que o ex-todo-poderoso da Renault-Nissan Alliance foi condenado na Holanda, em maio deste ano, a devolver 5 milhões de euros (o equivalente a R$ 30,5 milhões) em salários à marca japonesa e à sua subsidiária Mitsubishi. 

“Estou muito decepcionado com esta decisão e vou apelar da sentença”, disse à agência Reuters, no mês passado. Outras decepções certamente precederam essa condenação, já que, em junho de 2019, uma auditoria interna da Renault descobriu um rombo de 11 milhões de euros (mais de R$ 67 milhões) nas despesas com Ghosn.

Em setembro daquele mesmo ano, o executivo fez um acordo com o governo norte-americano para encerrar um caso de evasão fiscal de US$ 140 milhões (quase R$ 750 milhões). 

Em fevereiro de 2020, a Nissan abriu um processo formal contra ele por corrupção, no valor de US$ 90 milhões – R$ 465 milhões que, se o leitor somar às outras cifras, chegará em um valor inacreditável!

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Vitimização

No último mês, Ghosn embarcou em uma espécie de turnê digital para o lançamento de um livro, “Sempre Juntos” (“Ensemble, toujours”, 2021, Les Éditions de l'Observatoire), escrito a quatro mãos com sua esposa Carole. 

Na obra, o agora fugitivo da Interpol alega ser vítima de “uma conspiração” e sustenta que, no Japão, a procuradoria pública condena 99,4% dos acusados. 

“Nem Stálin sonharia com um índice de condenação tão alto, já que, na União Soviética da sua época, a acusação vencia em 92% dos casos”, sofismou em entrevista ao programa “Manhattan Connection”, da TV Cultura. 

“Eu achei que a prisão era uma brincadeira, mas vi que tinha alguma coisa errada, porque se passaram 40 dias, até que minha acusação fosse formalizada”, disse à CNN Brasil, sugerindo que, por trás de tudo, há um complô entre o governo japonês e a própria Nissan, para impedir sua fusão definitiva com a Renault.

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(Imagem: Frederic Legrand - COMEO/Shutterstock)

No entanto, ele não explica de forma clara, cristalina, irretorquível, como tanto dinheiro foi parar no seu bolso sem origem declarada. Ao contrário, alega apenas que há um “golpe” em curso. 

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“Para minha prisão, afirmaram que eu tinha muito poder, que eles queriam restabelecer o equilíbrio entre Renault e Nissan, porque do lado japonês, a Procuradoria-Geral, com suporte do Ministério da Indústria, trabalha para que a identidade nipônica não se perca dentro de um grupo tão poderoso”, justifica.

Faltou apenas dar uma razão inteligível para que este tipo de disputa interna não tenha sido levada ao foro internacional de arbitragem, previsto em contrato por ambas as partes desde 1999. 

“Não se pode esquecer que, em 2018, a aliança entre Renault, Nissan e Mitsubishi se tornou o maior grupo automotivo do mundo, à frente de Toyota e Volkswagen”, acrescentou.

Ghosn cita o forte crescimento e a lucratividade como elementos que ensejam sua perseguição, mas não esclarece a subnotificação de renda, as despesas de luxo bancadas pela empresa e a cobertura de perdas em investimentos pessoais. 

“Os executivos que, hoje, são meus acusadores sabiam de tudo. O objetivo é destruir minha imagem”, é o que se limita a dizer.

Livre, leve e solto

Desde a fuga cinematográfica do Japão (pela qual pagou pelo menos US$ 900 mil ou mais de R$ 4,5 milhões), escondido em um baú para instrumentos musicais, Ghosn vive livre, leve e solto no Líbano. 

“Fui abandonado pelo governo francês e o presidente Bolsonaro não me ajudou em nada”, disse à CNN Brasil. “Obviamente, no meu caso estou lutando contra governos – nominalmente, os governos francês e japonês – e eles têm meios de que não disponho”, disse. 

“Mas, fundamentalmente, tudo isso que aconteceu comigo me fez ver o que é, realmente, importante na vida. Posso viver com minha esposa, tomamos café da manhã juntos, não tenho mais jetlag – o executivo acumulava mais de 150 mil milhas de voos, todos os anos – e durmo muito melhor. É uma liberdade que nunca tive”, contou à agência Reuters. 

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Na verdade, Ghosn tenta dar uma razão, um fundamento que convença seus interlocutores de que sua fuga das autoridades judiciais e da polícia japonesa tem pretexto, que trata-se de uma ação legítima e, portanto, diferente da escapada de um Lázaro Barbosa da vida, em Goiás.

Pura retórica, já que sua altiloquência serve apenas para desviar o foco daquilo que enseja sua persecução: o fato de o executivo estar no epicentro de um escândalo cujas cifras chegam ao equivalente a quase R$ 1,2 bilhão.

Conheça os detalhes do escândalo de quase R$ 1,2 bilhão envolvendo o ex-CEO da Nissan, sua fuga cinematográfica do Japão e sua boa vida, agora, no Líbano

(Imagem: Frederic Legrand - COMEO/Shutterstock)

Carlos Ghosn, aos 67 anos, vive bem (muitíssimo bem, em uma mansão em Beirute) e pouco tem que se importar com a Justiça japonesa, até porque não há acordo de extradição entre o Líbano e o Japão, o que lhe garante a mais completa das impunidades, enquanto estiver em solo libanês. 

Dinheiro também não será problema: mesmo que tenha ficado com “só” metade do valor somado de tudo de que é acusado, poderia gastar R$ 33 mil por dia, nos próximos 50 anos, antes de esgotar suas reservas. 

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A maior perda que parece experimentar, para além da autonomia para viajar de jatinho particular pelos principais destinos turísticos do mundo, é ver sua imagem emplastada, sua figura manchada, seu quadro enlodado. 

Dos dias de trabalho que começavam às 7 horas da manhã e se estendiam até as 11 da noite, o próprio Ghosn afirmou não ter saudade. Do homem que, nas duas últimas décadas, otimizou a indústria, enxugou os gastos com pessoal, simplificou os produtos e valorizou as companhias resta apenas um borrão. 

De seus méritos, dos mais de 20 prêmios internacionais, das capas de revista, da bajulação dos colaboradores, do servilismo da imprensa, hoje Carlos Ghosn parece ter extraído apenas uma lição: até o CEO mais aclamado de uma indústria pode se tornar uma engrenagem quebradiça da máquina corporativa, que, se assim quiser ou precisar, irá jogá-lo aos leões.

Imagem de abertura: Plamen Galabov/Shutterstock 

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