A tocada suja e a cabecinha torta
Na lida do jornalista automotivo, o trabalho de testar carros diferentes a cada semana possibilita que você, no mínimo, aprenda a guiar bem, pelo menos para aquele cidadão que tiver um mínimo de dom para a coisa. Conheci alguns jornalistas automotivos, nos últimos anos, que eram bem ruins de guidão. Mas eram as exceções que confirmavam a regra. A maioria anda bem.
Como uma parte dos eventos de lançamentos é realizada em pistas fechadas, inclusive, geralmente até em autódromos, esse jornalista ganha o costume de pilotar no limite, até em razão da segurança proporcionada por ambientes controlados. Você vai testando semanalmente os limites de cada carro – e isso vai aprimorando os seus próprios limites.
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No meu início de carreira, eu trabalhava em uma revista que avaliava os carros em pistas. Todos eles. Testava tudo: consumo urbano e rodoviário (isso me condicionava a ter o pé calibrado para manter as velocidades padronizadas para o teste); acelerações, retomadas e velocidade máxima (ensinava a andar rápido); aceleração lateral (dava uma boa noção de contorno veloz em curvas); além de nível de ruído e frenagens (em um período em que poucos carros tinham ABS. E você tinha de testar os freios sem permitir o travamento das rodas). Até capacidade de porta-malas.
Ganhei alguma habilidade para pilotar rápido, embora eu percebesse, quando andava com alguns jornalistas mais experientes, que eles tinham uma tocada “mais limpa”. Quando invertíamos os bancos de motorista e passageiro, eles atestavam que eu era rápido, mas tinha uma pilotagem “suja”.
Fui aprender o que isso significava com exatidão em 1997.
O teste do alce
Naquele ano, o “teste do alce” ficou mundialmente conhecido quando uma revista sueca divulgou que havia capotado o recém-lançado Mercedes-Benz Classe A, aquele mesmo modelo que viria a ser fabricado no Brasil e partir do ano seguinte, em 1998. E pior: o carro teria tombado a apenas 60 km/h!
Esse teste era composto por uma fileira de cones em que o piloto de provas vinha trafegando pela faixa da direita. Ele simulava um desvio repentino e brusco para a esquerda e outro, logo em seguida, para a direita de novo. A ideia era reproduzir uma situação comum àquele país: você estava em uma rodovia escandinava e surgia um alce no meio da pista, exigindo o desvio imediato. O cara, o tal do alce, é bem maior que um cavalo. Quem não consegue desviar e atropela o animal geralmente se machuca. Vira um acidente sério.
A Mercedes-Benz até atrasou o lançamento do carro e lotou o pequeno monovolume de recursos eletrônicos, com destaque para o controle de tração e estabilidade (ESP), que era impossível de ser desligado, como curiosidade. Creio ter sido o primeiro carro nacional a tê-lo de série.
A marca reprogramou o lançamento para alguns meses depois. Como o Classe A também seria feito no Brasil, ela levou um grupo de jornalistas brasileiros à Alemanha para conhecer o resultado. Alugou um aeroclube nas redondezas de Stuttgart e montou uma série de testes dinâmicos para que nós apurássemos o resultado das alterações eletrônicas no carro.
Sinto que a marca, do alto de sua tradição e prestígio, jamais tivera sido “desafiada” publicamente, como fez a revista sueca ao divulgar o resultado de seu teste do alce. Os alemães ficaram pistola. E com razão. Prova disso foi esse evento, em que eles fizeram questão de mostrar o “novo” Classe A, já devidamente paramentado com ESP.
(O carro tinha o centro de gravidade alto, o entre eixos era muito curto a suspensão não tinha nenhum primor construtivo. Mas sessentinha era muito lento para acontecer isso. Sei lá).
Limpa ou suja?
Mas o que isso tem a ver com “tocada limpa ou suja”? Explico agora. Um dos carros de teste tinha um dispositivo, espécie de computador de testes, que media a ação do ESP na curva do alce. A Mercedes pegou esse carro e promoveu uma competição entre os coleguinhas da imprensa para ver quem faria a prova mais rápido, apurando-se a velocidade de entrada no roteiro de cones. E, claro, só valia quem não derrubasse nenhum cone, naturalmente.
Ganhei a prova, inclusive. Fiz o teste a 93 km/h.
O equipamento fornecia uma fitinha impressa onde saía um gráfico com a ação do interventor eletrônico. O meu parecia um eletrocardiograma: as linhas eram um sobe-e-desce desgraçado, mostrando atuação incisiva da eletrônica na minha manobra, visto que eu executei o teste do alce “brigando” todo o tempo com o volante. Entrei na primeira perna, golpeei o volante, a carroceria inclinou, eu corrigi, depois provoquei de novo...
Sem a eletrônica, certamente, o carro teria perdido aderência, derrapado e derrubado algum cone. Isso foi a tal da tocada SUJA. Você até anda rápido, mas sacrifica o carro, briga fortemente com o volante e abusa do freio, pendurando nos pneus e dependendo da eletrônica. O tempo vem. Mas é feio guiar assim.
Eis que meu amigo Fernando Calmon, também colunista e um dos jornalistas mais respeitados do país nesse setor, se senta no Classe A. E faz 89 km/h. Só que o cara percorre a curva do alce sem usar o ESP. O gráfico era lisinho, sem ação da eletrônica!!! Imagine a precisão e a suavidade de prever a velocidade de entrada da fileira de cones, esterçar o volante com precisão, dosar o acelerador, passar rente aos cones e explorar ao máximo a aderência e a estabilidade do carro.
Essa era a tal da tocada “LIMPA”.
Faz track-day? Quer aprender a andar rápido? Faça como o Calmon. Eu também me dediquei a isso e hoje guio de forma muito mais limpa. A dica é simples: o tempo vem quando você anda em linha reta. Quanto mais você brigar com o volante para corrigir saídas de frente ou traseira, mais estará andando de lado e matando a velocidade. Melhor dosar a velocidade de entrada da curva e percorrê-la de forma suave, sem telegrafar o volante todo o tempo.
A cabecinha torta
Estava no lançamento do Uno 1.6R MPI no Autódromo de Goiânia, meados dos anos 90. Saio para andar na pista com o mestre Bob Sharp como passageiro. Pacientemente, ele vai dando dicas de pilotagem para aprimorar minha técnica.
E, quando percebo, lá estou eu virando tempo. As correções feitas por ele eram cirúrgicas. “Aqui, Edu, no S, você sacrifica a primeira perna para sair cheio na segunda”. “Pode frear menos aqui no final da reta...” Era o Bob, né? Sabia, e sabe, tudo desses troços chamados automóvel e pilotagem.
Pois eis que encosto na traseira de outro 1.6R. E o Bob perde rapidamente a paciência, ficando visivelmente contrariado.
“Jamais cometa o mesmo erro desse cidadão aí na frente. Olha que coisa ridícula! Ele fica tombando a cabeça nas curvas!! Isso faz sentido na Fórmula 1, onde as curvas são contornadas com mais de 4g de aceleração lateral. Não de Uno, a 80 km/h! E nem quando estiver em qualquer carro de rua, andando na estrada! Ridículo!! Você altera seu campo de visão desnecessariamente quando entorta a cabeça. Pra que isso?? Mantenha a cabeça ereta e ponto final! Edu, eu quero que você passe esse idiota por fora ali na curva do final da reta...”
Obedeci, claro. E com o pescoço durinho, durinho.
Essa história deve ter quase 30 anos. Mas continuo caindo na gargalhada quando estou descendo uma serra e, inevitavelmente, encosto na traseira de alguém que fica entortando a cabecinha nas curvas. Pra que isso, Brasil? “Cabeça ereta e ponto final!”
Este texto contém análises e opiniões pessoais do colunista e não reflete, necessariamente, a opinião da Mobiauto.