Tecnologia embarcada dos carros já é usada para cometer crimes; entenda

Brasil registra cerca de 30 mil denúncias anuais por este tipo de crime, com alta de até 55%, em Estados como o Paraná; nos EUA, Tesla foi absolvida por não desativar conta de ex-marido
HG
Por
08.01.2024 às 19:00
Brasil registra cerca de 30 mil denúncias anuais por este tipo de crime, com alta de até 55%, em Estados como o Paraná; nos EUA, Tesla foi absolvida por não desativar conta de ex-marido

Pode soar exagerado, mas a tecnologia embarcada já se transformou numa ferramenta para ‘stalkers’ que, cada vez mais, usam de recursos como rastreadores, localizadores veiculares e até mesmo funções remotas para perseguir vítimas que, na maioria dos casos, são suas próprias ex-companheiras.

Nos Estados Unidos, a Tesla Motors, que é uma referência em inovação, recentemente foi parar no tribunal californiano, onde a discussão ganhou vulto e despertou outras montadoras para um problema que, infelizmente, só tende a crescer.

Você também pode se interessar: 

“Casos de ‘cyberstalking’ ou perseguição tecnológica envolvendo automóveis vêm surgindo à medida que as montadoras adicionam recursos cada vez mais sofisticados. Advogados norte-americanos que atuam na área de família relatam que, em inúmeros processos de divórcio, a violência doméstica migrou para este campo. É um tipo de abuso que, de tão comum, fez com que gigantes como a Google e a Apple criassem salvaguardas para suas clientes e usuárias, diante do aumento dos casos de abuso por meio de ‘spywares’ e dispositivos rastreáveis. Mas só agora os fabricantes de veículos se deram conta de que este comportamento criminoso alcançou seus produtos”, comenta a jornalista Kristina Cooke que, ao lado de seu colega Dan Levine cobriram para a Agência Reuters um caso que começou em 2020, na cidade de San Francisco, e que só agora teve um desfecho.

No Brasil, dados obtidos via Lei de Acesso à Informação mostram que o número de casos de ‘stalking’ cresceu quase 20% no ano passado, em relação a 2022. Só na região de Campinas, por exemplo, foram 1.500 ocorrências nos dez primeiros meses do ano passado e, no Paraná, um levantamento da Secretaria de Segurança Pública estadual revelou alta de 55,5% neste tipo de crime.

Em todo o país, são registradas cerca de 30 mil denúncias de perseguição por meios eletrônicos ou com uso de tecnologias digitais, o que representa 40 vítimas para cada grupo de 100 mil mulheres – o art. 147-A, do Código Penal, prevê penas de reclusão de seis meses a dois anos, além de multa, para o agente que “perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade”.

De volta à Califórnia, há quase quatro anos, o sargento de polícia David Radford contatou a Tesla, pedindo que o fabricante fornecesse dados sobre o acesso remoto de um de seus modelos. A suspeita era de que o comprador do Model X em questão estaria violando uma ordem judicial, perseguindo e assediando a esposa de quem estaria se divorciando.

“Ela – a identidade da vítima não será revelada, já que o processo que tramitou na Justiça californiana trazia apenas as iniciais de seu nome – chegou à delegacia visivelmente abalada, disse que o marido estaria desrespeitando a medida protetiva que restringia sua aproximação e que havia colocado no banco traseiro, usando o acesso remoto que tinha das travas do carro que ela usava, um taco de beisebol com que já a havia ameaçado, anteriormente”, contou Radford.

Inicialmente, a Tesla se esquivou do pedido, afirmando que o registro de tais informações de acesso era apagado, automaticamente, após sete dias e que haviam se passado semanas do episódio.

Ouvidos pela Reuters, advogados, defensores públicos e até mesmo funcionários da montadora confirmaram, sem fornecer detalhes, que tinham ciência de casos análogos, citando preocupação tanto em relação à privacidade dos condutores e usuários, quanto em relação à segurança.

“Vários fabricantes oferecem recursos semelhantes de acesso remoto e rastreamento, mas, apesar de já haver um grupo de estudo que reconhece a necessidade de proteção, diante do fato deste tipo de tecnologia ter se tornado uma ferramenta de abuso, nenhuma montadora se manifestou oficialmente sobre o assunto”, conta Levine.

“Nosso sistema OnStar faculta a todos os motoristas que ocultem sua localização, mesmo que o condutor não seja nem o proprietário e nem o usuário principal do veículo”, assegura Kelly Cusinato, porta-voz da General Motors.

Já a Rivian, outro fabricante norte-americano que, a exemplo da Tesla, só produz EVs, reconhece o potencial de risco e já trabalha em uma função de desabilitação semelhante à da GM: “Nossos clientes têm o direito de controlar para onde e para quem vão essas informações”, disse o vice-presidente de desenvolvimento da marca, Wassym Bensaid.

“Até hoje, não tivemos nenhum registro de que nossas tecnologias embarcadas tenham sido usadas por ‘stalkers’ ou para qualquer tipo de violência doméstica”, garantiu Bensaid. À Reuters, a GM não detalhou se já registrou casos parecidos.

Absolvição e solução

No processo de San Francisco, que tramitou no Tribunal Superior estadual, a vítima acusou o ex-marido de agressões física e sexual, incluindo a Tesla no polo passivo da acusação por suposta negligência, já que a marca continuou dando acesso ao homem às funções do veículo, apesar de a Justiça ter imposto restrições a ele e de a própria condutora ter pedido, reiteradamente, no concessionário e por escrito, que a conta do marido – que dava acesso às funções remotas e de rastreamento – fosse desativada.

Na ação, a ex-esposa e usuária do automóvel buscava indenização por danos morais e materiais junto à montadora que foi procurada diversas vezes, mas sempre afirmou ser impossível remover a conta do ex-marido pelo fato de ele permanecer, contratualmente, como coproprietário do Model X em questão.

O caso, encerrado em 2023, absolveu a Tesla por ausência de provas, já que não houve comprovação de que o fabricante colaborou, direta ou intencionalmente, para facilitar o abuso – ademais, a ordem judicial restritiva que ainda está em vigor se endereça exclusivamente ao ex-marido, não obrigando a Tesla à suspensão ou exclusão de sua conta.

Na sua decisão, o juiz Curtis Karnow, do Tribunal Superior de San Francisco, destacou que, em função da copropriedade, “tanto a mulher quanto seu marido tinham o direito de usar a tecnologia automotiva”, que a Tesla não tinha como se certificar se os pedidos da vítima eram legítimos, já que “ex-cônjuges podem inventar acusações, e impor essa responsabilização aos fabricantes de automóveis traria consequências ilimitadas e incalculáveis”.

Já o fabricante, argumentou que a solução jurídica para o caso não estaria ao seu alcance: “Para desativarmos a conta do ex-marido, ele teria que deixar de aparecer como coproprietário do automóvel, porque ele foi registrado como usuário principal no momento da aquisição e não haveria como remover seu acesso sem cometermos uma ilegalidade”, defendeu o conselheiro geral da marca, Ryan McCarthy.


Para a professora da Faculdade de Direito da Universidade de Berkeley e ex-conselheira de Política Interna da Casa Branca, Catherine Crump, é “decepcionante” que empresas tão sofisticadas e com bons recursos não tenham respostas para esta questão.

“Os ‘stalkers’ buscam, sempre, uma maneira de usar dados de localização de suas vítimas, o que torna este problema totalmente previsível, para as montadoras”, assegura Catherine. Ela lembrou que a própria Apple foi processada, na Califórnia, por duas mulheres que tiveram AirTags (dispositivos do tamanho de uma moeda de US$ 0,50) escondidas entre seus pertences por perseguidores, que passaram a rastreá-las – em um dos casos, o dispositivo foi escondido na mochila do próprio filho.

Em março do ano passado, um homem admitiu à polícia de Nashville, no Estado norte-americano do Tennessee, ter “implantado” um Apple Watch no carro da ex-companheira para rastreá-la e ameaçá-la.

Também na Califórnia, Renée Izambard disse ao “Auto News”, em uma entrevista, que seu ex-marido a rastreou, por meio do aplicativo de seu Tesla. Ela percebeu que era vítima de ‘stalking’ por meio dos comentários dele, que já possuía histórico de abusos.

“Esta era apenas uma parte de um padrão muito mais amplo de dominação coercitiva”, destacou Renée. Neste caso específico, ela é quem detinha o controle de acesso para alterar as configurações da conta e, ao perceber os fatos, desabilitou a conexão remota do carro – a Tesla permite que o titular da conta principal adicione outros motoristas, podendo também negar ou desabilitar esse acesso.

Este texto contém análises e opiniões pessoais do colunista e não reflete, necessariamente, a opinião da Mobiauto.

https://youtu.be/g4pAb_qnTJ0?si=0CUhkyTw-y9h3RZo

Comentários