Por que o Brasil não usa o etanol como deveria na luta contra emissões

Biocombustível derivado da cana tem uso abaixo do potencial e país não define rumos mais claros para ele
PK
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01.11.2022 às 12:34
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Biocombustível derivado da cana tem uso abaixo do potencial e país não define rumos mais claros para ele

Tem sido quase unânime ouvir de executivos e engenheiros da indústria automotiva que o Brasil não precisa correr atrás da eletrificação de seus veículos.

Afinal, somos o país com a mais confortável e privilegiada condição de reduzir rapidamente emissões de gases de efeito estufa de sua frota de veículos simplesmente fazendo o que já faz há mais de quarenta anos: usando o etanol.

Esta é, no entanto, uma meia verdade. A metade verdadeira do raciocínio é que, de fato, o biocombustível é uma alternativa eficaz, viável e muito mais barata do que a eletrificação para descarbonizar as emissões dos veículos.

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Isso porque o etanol amplamente conhecido, produzido e distribuído por aqui é quase neutro em CO2, visto que entre 80% e 90% de suas emissões podem ser reabsorvidas pelas plantações de sua principal matéria-prima, a cana-de-açúcar.

A parte dessa história que falta com a verdade é que, para ser uma solução efetiva, o etanol precisa, de fato, ser utilizado em todo seu potencial, coisa que hoje não acontece. 

Atualmente, o biocombustível representa apenas 45% do consumo da frota estimada de 34 milhões de veículos flex em circulação no País – e seria bem menos que isso se não fosse obrigatória a mistura de 27% de etanol anidro na gasolina consumida no Brasil.

Segundo dados da ANP (Agência Nacional de Petróleo, Gás e Biocombustíveis), em 2021 foram consumidos no Brasil 17 bilhões de litros de etanol hidratado, o E100, e mais que o dobro disso, 39,3 bilhões de litros, de gasolina C, que tem 27% de etanol anidro, o equivalente a cerca de 10,5 bilhões de litros. 

Ou seja: a opção preferencial por aqui segue sendo o combustível fóssil, ainda que seja o alcoolizado E27.

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Preço não compensa

Hoje, 82% dos carros vendidos no País têm motorização flex e, desde 2003, as vendas destes modelos já somam quase 40 milhões de automóveis e comerciais leves, o que criou a frota circulante atual em torno de 34 milhões de veículos que rodam com etanol ou gasolina em qualquer proporção de mistura. 

Apesar disto, a maioria destes carros só queima gasolina C E27 em seus motores, porque o preço do etanol não é financeiramente compensador na esmagadora maioria dos Estados brasileiros.

Como o etanol tem consumo, em média, 30% maior que o de um veículo similar a gasolina, para ser competitivo, o biocombustível precisa custar, no máximo, 70% do preço do combustível fóssil. Atualmente isso ocorre em poucos Estados.

Segundo o acompanhamento semanal da ANP, do dia 9 ao 15 de outubro, em 1.690 postos espalhados pelo País, o preço médio do etanol hidratado ficou acima de 70% do valor da gasolina em 22 dos 25 Estados pesquisados, sendo que em dez superou 80% e em quatro passou de 90%. 

A situação mais bizarra ocorreu no Rio Grande do Sul, onde o litro do etanol custava 98,3% ou quase o mesmo que a gasolina C comum. No período, apenas Goiás (67,4%), Mato Grosso (62,2%) e Paraíba (68,9%) vendiam etanol abaixo de 70% do valor da gasolina. Em São Paulo (71%), Distrito Federal (70,8%) e Bahia (70,5%), os percentuais ficaram bem próximos do limite.

Para dizer o mínimo, é uma situação contraditória: de um lado, o etanol brasileiro recebe efusivos elogios por ser uma solução viável para a descarbonização, estar pronto para ser usado, sem necessidade de qualquer grande mudança tecnológica nos carros, e ser amplamente distribuído e está acessível em todo o País.

Porém, na prática, ele é simplesmente desqualificado pela exótica política econômica e tributária brasileira, que em vez de estimular o seu uso, isenta de impostos carros elétricos e híbridos importados e extremamente caros.

Enquanto consumidores brasileiros pagam caro para encher o tanque de seus carros com o combustível mais inadequado para o meio ambiente, a gasolina, alguns afortunados pagam centenas de milhares de reais para importar elétricos, que têm quase nenhum impacto ambiental positivo mas são isentos ou pagam alíquotas muito baixas de imposto de importação, não geram empregos no País nem arrecadação tributária.

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Estímulo necessário

Se quiser, de fato, que o etanol seja uma solução descarbonizante do transporte, o País precisa, antes de mais nada, tomar esse rumo com mais assertividade, criando estímulos reais para aumentar o uso do biocombustível que hoje tem praticamente a mesma carga tributária da gasolina, sem vantagem competitiva.

Para tornar o etanol uma solução viável de fato, ao menos quatro pilares deveriam ser construídos: 

  1. Redução ou mesmo isenção de tributos sobre biocombustíveis;
  2. Incentivos à infraestrutura para aumentar a produção e criar estoques reguladores de preços nas entressafras de cana;
  3. Incentivar pesquisas para o desenvolvimento de biocombustíveis mais eficientes e de fontes alternativas – como a palha e o bagaço da cana, por exemplo;
  4. Internacionalização do produto como commodity – e aqui não se trata só de exportar, mas de estimular a produção e o uso no maior número possível de mercados, como vem sendo negociado com a Índia e alguns países sul-americanos, pois quanto mais força internacional tiver, mais o etanol ganha viabilidade. 

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Desempenho ambiental

Em face de sua eficiência ambiental, o etanol merece até mais incentivos do que a eletrificação, os números comprovam isso. 

Segundo cálculos da Unica, União da Indústria da Cana, considerando o ciclo completo do poço à roda – inclui o plantio e colheita da cana, seu processamento, transporte e distribuição, além do uso nos carros –, um veículo alimentado exclusivamente com a gasolina brasileira, com 27% de etanol anidro, emite 131 gramas de CO2 por quilômetro, contra apenas 37 g CO2/km quando abastecido integralmente com o etanol hidratado de cana. 

Este valor é menor do que um modelo a elétrico a bateria na Europa, que, alimentado pela matriz energética atual da região, emite 54 g CO2/km – e emitiria 35 g CO2/km se usasse a energia mais limpa gerada no Brasil, 64% a partir de hidrelétricas. 

O híbrido flex, como o Toyota Corolla já produzido no País desde 2019, apresenta a melhor relação de eficiência: abastecido só com etanol, têm emissão de 29 g CO2/km. 

Claro que o etanol não é perfeito, tem problemas a resolver nas questões de abastecimento, preço, eficiência e emissões e poluentes como aldeídos e ozônio. Mas a eletrificação também enfrenta problemas parecidos.

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Nesta situação, portanto, o mais eficiente é estimular o que já está à mão, o biocombustível, ao mesmo tempo em que se busca combinar os benefícios de tecnologias, como nos diversos projetos de veículos híbridos flex que já estão em desenvolvimento no País e devem começar a ser lançados a partir de 2023 ou 2024.

Não se trata de desistir de desenvolver veículos puramente elétricos no País, mas de escolher e estimular prioridades viáveis, sem desistir de nenhuma tecnologia. 

Muito pelo contrário, é preciso avançar no desenvolvimento de motores flex mais eficientes tanto quanto na eletrificação, com incentivos à engenharia e produção local – o que não vai acontecer enquanto carros elétricos importados forem isentos de impostos.

Imagens: Shutterstock

Este texto contém análises e opiniões pessoais do colunista e não reflete, necessariamente, a opinião da Mobiauto. 

Pedro Kutney é jornalista especializado em economia, finanças e indústria automotiva. É autor da coluna Observatório Automotivo, especializada na cobertura do setor automotivo, e editor da revista AutoData. Ao longo de mais de 35 anos de profissão, foi editor do portal Automotive Business, editor da revista Automotive News Brasil e da Agência AutoData. Foi editor assistente de finanças no jornal Valor Econômico, repórter e redator das revistas Automóvel & Requinte, Quatro Rodas e Náutica.

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