Híbrido flex nacional é prejudicado pela falta de estímulo ao etanol

Falta de estímulo maior ao etanol favorece uso de gasolina e reduz vantagem ambiental da eletrificação combinada com biocombustível
PK
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03.09.2024 às 21:26
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Falta de estímulo maior ao etanol favorece uso de gasolina e reduz vantagem ambiental da eletrificação combinada com biocombustível

Diante de medições realizadas nos últimos anos por empresas e entidades setoriais parece não haver dúvidas de que a melhor solução de descarbonização das emissões veiculares, especialmente no Brasil, é a mistura da eletrificação com biocombustíveis nos carros híbridos flex, equipados com motor a combustão bicombustível que rodam com etanol ou gasolina em qualquer proporção.

O problema desta rota tecnológica é a abertura de uma bifurcação perigosa: o uso preferencial da gasolina em vez do etanol, o que reduz sensivelmente a vantagem ambiental do carro híbrido flex, pois cerca de 90% das emissões de CO2 do biocombustível produzido no País são reabsorvidas pelas próprias plantações de cana ou milho.

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Em medições divulgadas pela Unica, União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia, levando em conta o balanço quase neutro de emissões do biocombustível brasileiro, um carro abastecido com gasolina utilizada no Brasil, misturada com 27% de etanol anidro, emite 131 gramas de CO2 por quilômetro rodado, relação que se reduz a 37 gCO2/km no veículo que usa só etanol hidratado, o E100, e a apenas 29 gCO2/km no caso de um Toyota Corolla híbrido flex abastecido com etanol, que emite menos do que um carro elétrico a bateria alimentado pela matriz energética da Europa.

O Brasil é, no momento, o único país do mundo que domina e pode usar a rota tecnológica dos híbridos flex, mas não utiliza incentivos suficientes para tornar o etanol a escolha de preferência da maioria dos consumidores nos postos de abastecimento. Por diferença favorável de preço, desinformação ou puro preconceito a gasolina fóssil continua a dominar os abastecimentos de veículos leves equipados com motores ciclo otto.

País do etanol usa mais gasolina

Atualmente existem cerca de 33 milhões de carros flex em circulação no País, que compõem quase 85% da frota nacional de veículos leves. Em 2023 eles consumiram 18,1 bilhões de litros de etanol hidratado, o E100, o que significou apenas 21% do consumo total de combustíveis para motores otto. Os 79% restantes no ano passado resultam do consumo de 46,5 bilhões de litros de gasolina C, obrigatoriamente misturada com 27,5% de etanol anidro, o que representou 12,9 bilhões de litros.

A gasolina A, sem mistura com etanol, em 2023 representou 57% do consumo total da frota de 39,7 milhões de veículos leves com motores otto. Ou seja: o combustível fóssil continua a dominar a cena no único país do mundo com farta distribuição de biocombustível e com dezenas de milhões de carros que podem utilizá-lo sem problemas, incluindo aí os modelos híbridos flex atuais e futuros.

É fato que a desvantagem de preço do biocombustível em relação à gasolina – em muitos casos nem tão grande – é responsável em grande medida por esta distorção, mas também existe o componente do vira-latismo atávico que avalia como sendo inferior qualquer invenção ou inovação nacional.

A preferência pela gasolina se dá até mesmo na meia dúzia de estados onde o etanol fica abaixo de 70% do preço da gasolina para compensar o consumo 30% maior do biocombustível – uma conta antiga que, diga-se, não acompanhou a evolução tecnológica dos motores, como os turboalimentados com injeção direta que deixam essa diferença já abaixo dos 25%, e os híbridos flex tendem a melhorar ainda mais esta relação.

Segundo acompanhamento da ANP, Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, em 2023 o preço médio da gasolina no País aumentou 6,8% e o litro do etanol caiu 12,8%, mas nem assim o consumo do biocombustível aumentou, ficou estável em relação a 2022.

Produção acima da demanda

Não é por falta de produto que o etanol não decola, pois as 360 usinas no País produziram 35,3 bilhões de litros – 29,5 bilhões destilados da cana e 5,8 bilhões do milho – o que resultou em produção de 4,3 bilhões de litros acima da demanda total de 31 bilhões.

Também não há no horizonte nenhum risco de desabastecimento de etanol, como aconteceu no fim dos anos 1980. Sem necessidade de ampliar 1 hectare sequer de área plantada, a produção atual poderia saltar de duas a quatro vezes, para algo como 58 bilhões a 120 bilhões de litros por ano de etanol de cana e milho.

Segundo estudo da EPE, Empresa Brasileira de Pesquisa Energética, ligada ao Ministério das Minas e Energia, todo este potencial de produção pode ser destravado por três fatores: a recuperação de áreas degradadas de pastagens que podem ser convertidas em plantações de cana e milho, a expansão da segunda safra nacional de milho e projetos de produção de etanol de segunda geração, a partir do bagaço de cana que sobra da primeira moagem – já existem três usinas de E2G em operação no País com capacidade de 154 milhões de litros/ano e há mais cinco em construção, além de dois projetos.

E nesta conta nem são contabilizadas ainda novas e promissoras fontes de biocombustível, como o agave que pode ser plantado em grandes extensões do semiárido nordestino, com potencial de produzir mais etanol do que hoje é destilado no Sudeste. Unicamp, Shell e Senai/Cimatec já estão tocando o projeto Brave com plantações de agave no sertão da Bahia para alimentar usinas piloto de produção de etanol e biogás.

Para-inglês-ver

Para destravar todo o potencial do etanol no País é necessário também acabar com o preconceito contra o biocombustível, que existe até mesmo dentro dos fabricantes e gera situações insólitas. Por exemplo: meses atrás fabricantes enviaram para uma reunião do G20 no Rio de Janeiro, RJ, carros flex e híbridos flex adesivados nas laterais com a inscrição “Powered by Brazilian Ethanol”, para transportar autoridades e fazer propaganda da solução brasileira de descarbonização, mas foi só para-inglês-ver, pois boa parte destes veículos saíram das fábricas abastecidos com gasolina.

Com exceção da Volkswagen que há apenas três anos decidiu dar o exemplo a abastecer com etanol os carros de sua frota, os fabricantes instalados no Brasil preferem abastecer suas numerosas frotas próprias com gasolina, inclusive os carros que vão ser avaliados pela imprensa – representantes de montadoras já me disseram que esta é uma exigência de alguns jornalistas que testam os veículos.

Ia escrever aqui que todos os fabricantes, até onde se saiba, fazem com gasolina o primeiro abastecimento dos carros flex que saem de suas linhas de montagem, mas chegou a notícia fresca que a Stellantis decidiu inaugurar com etanol E100 o tanque de todos os modelos Jeep e Fiat Toro equipados com motorização turboflex produzidos na fábrica de Goiana, PE – e em 2025 será feito nos dois outros polos de produção do grupo em Betim, MG, e Porto Real, RJ.

A iniciativa ocorre 21 anos depois do lançamento do primeiro carro flex no Brasil, mas antes tarde do que nunca. Espera-se que mais fabricantes sigam o exemplo, que tem bom potencial de redução de emissões sem que nenhum grande investimento seja necessário.

Segundo a Stellantis somente este primeiro abastecimento dos carros com motorização turboflex T270 fabricados em Goiana irá evitar emissões estimadas em mais de 2,1 mil toneladas de CO2, o que representa uma diminuição de cerca de 87% em comparação ao abastecimento com gasolina.

Preços e impostos precisam baixar

É fato que baixar o preço do etanol, sem reduzir o da gasolina, é a solução mais eficiente para superar qualquer preconceito. E há duas maneiras de se fazer isto acontecer: reduzir a fatia das usinas, responsáveis por 52% da formação do preço do etanol, e diminuir a carga de 21% de impostos federais de 5% e estaduais de 16% atualmente aplicados sobre o biocombustível, segundo levantamento feito em 2023 pela EPE.

Com produção que cresceu 15% em 2023 e ficou acima da demanda os preços do etanol deveriam cair mais, mas há anos esta lei de mercado não funciona para o biocombustível, pois os produtores mantêm a confortável posição de acompanhar a evolução dos preços da gasolina, cujo consumo também puxa junto, obrigatoriamente, a mistura de 27% de etanol anidro.

Em tese o RenovaBio, programa criado há cinco anos pelo governo federal para incentivar o uso de biocombustíveis no País, deveria estimular a produção e baixar os preços do etanol por meio dos CBios, Créditos de Descarbonização emitidos por usinas de cana e milho e comprados obrigatoriamente por distribuidores de combustíveis fósseis. Esperava-se, com isto, encarecer a gasolina e baratear o etanol, mas até o momento este mecanismo não causou todo o efeito esperado.

Em 2023 os 329 produtores de etanol certificados para emitir CBios receberam R$ 4 bilhões com a negociação dos papeis em bolsa, mas estes valores não se refletiram em queda relevante de preços. Ao menos os CBios servem de estímulo para que as usinas sigam produzindo etanol mesmo quando a cotação do açúcar é mais vantajosa.

Por parte dos estados também não se tem notícia de nenhum gesto para baixar os impostos estaduais sobre o biocombustível. Portanto não há no horizonte visível nenhum sinal de queda relevante nos preços do etanol, mas há oportunidade de baixar o preço de carros que têm baixas emissões de carbono fóssil.

O governo federal tem nas mãos no momento algo que chama de IPI verde, um instrumento ainda a ser regulamentado do Mover, Programa Mobilidade Verde e Inovação, introduzido este ano para estimular a produção e venda de veículos de baixa emissão no País. Estes modelos vão pagar imposto reduzido de acordo com sua eficiência energética e pegada de carbono. Melhor ainda seria se o estímulo viesse acompanhado da obrigação dos fabricantes de repassarem reduções de impostos aos preços dos carros.

Faz todo sentido aplicar este benefício sobre carros elétricos, flex ou híbridos flex e, por que não, àqueles que só consomem etanol puro, que merecem incentivo maior em comparação com modelos que também consomem gasolina.

A produção de motores 100% a etanol, para carros a combustão ou híbridos, está na prateleira de alguns fabricantes no Brasil – notadamente a Stellantis que já tem o projeto desenvolvido – e só espera pela demanda, que poderá ser destravada por meio de redução atraente de preços.

Mais adiante, quando a reforma tributária aprovada este ano passar a vigorar integralmente, a inclusão de carros na sobretaxação do imposto seletivo – também conhecido como imposto do pecado – é outro instrumento que poderá ser utilizado pelo governo para incentivar a produção de veículos de baixa emissão, sejam eles elétricos, híbridos flex ou a etanol. Afinal também há de ser considerado pecado emitir gases de efeito estufa em um planeta cada vez mais inóspito que não para de aquecer.

* Pedro Kutney é jornalista especializado em economia, finanças e indústria automotiva. É autor da coluna Observatório Automotivo, especializada na cobertura do setor automotivo, e editor da revista AutoData. Ao longo de mais de 35 anos de profissão, foi editor do portal Automotive Business, editor da revista Automotive News Brasil e da Agência AutoData. Foi editor assistente de finanças no jornal Valor Econômico, repórter e redator das revistas Automóvel & Requinte, Quatro Rodas e Náutica.

Este texto contém análises e opiniões pessoais do colunista e não reflete, necessariamente, a opinião da Mobiauto.

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