Sonho de uma marca de carros nacional morre junto com a Troller

Brasil iniciou a produção local de automóveis sete anos antes da China, mas, apesar da nossa primazia, no passado, são os chineses que têm, hoje, mais de 80 marcas próprias
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19.08.2021 às 08:00 • Atualizado em 23.12.2021
Brasil iniciou a produção local de automóveis sete anos antes da China, mas, apesar da nossa primazia, no passado, são os chineses que têm, hoje, mais de 80 marcas próprias

 Por Homero Gottardello

A novela do encerramento da produção da Ford no Brasil, episódio sintomático da debandada da indústria automotiva, chegou no seu último capítulo com a Troller

A marca cearense, que se tornou uma subsidiária da gigante norte-americana em 2007, chegou a “subir no telhado”, na semana passada, e foi resgatada de lá por um comunicado que lhe garantiu sobrevida, mas só até o mês que vem. 

Depois, seus mais de 450 trabalhadores serão dispensados e o Brasil voltará à estaca zero no sonho de ter uma montadora genuinamente nacional. 

“Estamos adotando o caminho inverso ao dos países centrais, como Alemanha, Estados Unidos e China, desmobilizando ou enfraquecendo os instrumentos positivos de política industrial, implementados a partir de 2003”, alerta a Nota Técnica 259, publicada no mês passado pelo Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos).

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Brasil iniciou a produção local de automóveis sete anos antes da China, mas, apesar da nossa primazia, no passado, são os chineses que têm, hoje, mais de 80 marcas próprias

Esta é a grande questão por trás do fechamento da Troller, que, por determinação da matriz norte-americana da Ford, não poderá ser continuada, já que tanto a marca quanto o projeto do jipe T4 não serão negociados. 

“Esta posição é indesejada por nós”, afirmou o secretário de Desenvolvimento Econômico e Trabalho (Sedet) do Ceará, Maia Júnior. “O terreno [onde a fábrica da Troller está instalada] foi doado pelo Estado e de que adianta vender só o maquinário e a planta, se não será possível seguir com o produto?”, acrescentou. 

O fato é que a Ford, que não está dando a mínima para o aspecto econômico da Troller, não tem nenhum tipo de envolvimento humano com o Ceará, com o Brasil ou com “Isengard”. 

Trata-se de uma questão jurídica, que se resume a tratar da extinção dos contratos e conduzir a liquidação dos negócios – o brasileiro precisa, real e urgentemente, entender que não existe sentimento entre um CNPJ e uma pessoa física. No fim, sairá perdendo quem acreditou que a Ford cumpria alguma função social ali em Horizonte (CE). 

O secretário Maia Júnior terá que engolir sua “indignação”, até porque esperar “que a Ford norte-americana e a do Brasil não prejudiquem o desenvolvimento e os trabalhadores cearenses” é de uma infantilidade incompatível com o cargo executivo que ele ocupa na estrutura administrativa. 

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China 80 x 0 Brasil

Brasil iniciou a produção local de automóveis sete anos antes da China, mas, apesar da nossa primazia, no passado, são os chineses que têm, hoje, mais de 80 marcas próprias

Fato é que o Brasil não terá tempo sequer para reavaliar sua posição e suas ambições, no que tange à inserção nacional no negócio automotivo global. 

Infelizmente, perdemos o bonde da história e não há risco em afirmar que, daqui para frente, jamais teremos uma montadora capaz não só de atender a demanda interna específica, mas também de competir no mercado internacional. 

Pior, desde 1996, ano do fechamento da Gurgel, o sonho da autonomia brasileira neste setor parece ter sido, definitivamente, enterrado. 

Curioso é que a FNM (Fábrica Nacional de Motores), estatal fundada durante o governo Vargas, em 1942, já produzia caminhões no país em 1949, enquanto o primeiro veículo automotor chinês só saiu da linha da montagem da FAW, em Changchun, sete anos depois. Hoje, a China conta com mais de 80 marcas de automóveis de passeio e modelos comerciais. 

E enquanto nosso setor produtivo míngua, até mesmo os países da África Subsaariana vêm atraindo investimentos. Prova disso é a recente concórdia entre a influente e poderosíssima Associação Alemã da Indústria Automotiva (VDA) e a novíssima – criada em 2015 – Associação Africana de Fabricantes Automotivos (AAAM). 

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“Todo grande mercado de hoje começou pequeno no passado. É fundamental se adaptar às características e à evolução de um mercado desde o início”, disse à Deutsche Welle o diretor de negócios para governos e sociedades da VDA, Kurt-Christian Scheel. 

“No caso do mercado africano, existem boas perspectivas de crescimento e enxergamos no continente um potencial que ainda é pouco explorado”, acrescentou. E os alemães enxergam longe, quando se trata da prospecção de novos mercados para seus veículos.

Tanto no Brasil quanto na China, onde a Volkswagen se instalou na década de 80, quando pouquíssimas pessoas daquele país tinham acesso e um automóvel de passeio, os germânicos foram assertivos. Hoje, a VW é a marca com maior participação no mercado chinês, que responde por quase 40% do volume global de vendas do setor. 

Com 45 veículos para cada grupo de mil habitantes, o continente africano atualmente está longe das médias norte-americana (837 veículos para cada grupo de mil habitantes), chinesa (173 veículos) e mundial (203 veículos para cada grupo de mil habitantes).

Porém, a indústria olha para o futuro de um mercado de mais de 1 bilhão de consumidores, enxergando melhores oportunidades de negócio lá do que na América do Sul.

“Embora os volumes ainda sejam pequenos, a região subsaariana tem potencial para se tornar um grande mercado no futuro”, avalia o presidente-executivo (CEO) da subsidiária ganesa da Volkswagen, Jeffrey Oppong Peprah. 

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A VW já produz em cinco países africanos: África do Sul, Quênia, Nigéria, Gana e Ruanda. Entre os modelos, destaque para o sedan Passat, o SUV Tiguan e a picape Amarok. 

“O aumento da renda, em função do pagamento de salários dignos, vem aquecendo a demanda local, especialmente para carros de passeio. Há um rápido processo de industrialização, geração de empregos e um enorme potencial para o setor automotivo, na África Subsaariana”, analisa o diretor para o segmento automotivo da consultoria IndustriALL, Georg Leutert, no relatório oficial da empresa do ano passado.

Enquanto o Brasil assiste, impotente, à debandada de marcas e o encerramento de linhas de montagem, a AAAM enxerga os investimentos em países como Angola, Costa do Marfim, Senegal e Uganda como o marco inicial para a criação de grandes centros regionais que garantirão sinergia para sua nova cadeia automotiva. 

“As vendas de modelos zero-quilômetro, na África, crescerão de 1,1 milhão de unidades registradas em 2019 para cerca de 3 milhões de unidades em 2035”, declarou o diretor-presidente da AAAM, Dave Coffey. 

“Países como o Marrocos e a África do Sul, que já se industrializaram, terão uma progressão mais rápida, mas o continente terá que concluir este processo de uma maneira consolidada, para criar uma demanda sustentável. Hoje, se derrubássemos todas as barreiras tarifárias, por exemplo, não haveria uma resposta imediata, em termos de mercado”, analisa.

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Enquanto perdemos nossas marcas, África investe nas suas

Ou seja, enquanto o Brasil caminha, lentamente, para trás, a África avança no mesmo ritmo, só que para frente. E não se pode desprezar a recém-criada área de livre comércio africana que, na contramão do enfraquecimento do Mercosul, fortalece o continente com uma perspectiva positiva para o futuro. 

Como se pode notar, o fechamento da Troller, além de todas as questões econômicas e industriais que implica, é apenas a ponta do iceberg.

O pior de tudo, no entanto, não é só a concorrência que a indústria automotiva africana representará, em pouco tempo, mas a forma com que ela vem sendo erigida: o maior grupo egípcio do setor, a Ghabbour Auto, por exemplo, tem capital 100% nacional e um portfólio que contempla quase 40 veículos (entre modelos em produção e descontinuados), de seis marcas diferentes. 

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O empreendimento, semelhante ao do Grupo Caoa, retém expertise e agrega competência à indústria local, evitando que milhares de postos de trabalho sejam reféns das expectativas financeiras de matrizes estrangeiras. 

“Temos décadas de experiência neste negócio e flexibilidade para nos adaptarmos às flutuações do mercado de automóveis”, pontuou o presidente-executivo (CEO) da empresa, Raouf Ghabbour, em entrevista à rede pública canadense TVO. 

“Partilho da mesma filosofia implementada pela indústria automotiva sul-coreana, quase três décadas atrás. Depois de escolherem alguns mercados para testarem a qualidade de seus produtos, como o Oriente Médio e a própria África, seus engenheiros desenvolveram produtos e soluções de gestão que qualificaram o país para exportar em nível global”. 

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Enquanto o Egito, entre outras nações africanas, recebe aporte para o desenvolvimento de produtos massivos, o Brasil parece não conseguir se libertar da herança colonial.

Esperamos, na janela, pelo príncipe que vai nos tirar do Terceiro Mundo e, como num passe de mágica, nos içar a um posto ao lado de China, Alemanha, Japão e Estados Unidos – isso, quando nossas exportações de veículos caíram 35,5%, na última década.

Hoje, só a recuperação do mercado interno pode contribuir para a permanência das montadoras no Brasil. Mas isso exige uma prescrição diferente da atual.

“É preciso mudar a política macroeconômica vigente por um modelo de desenvolvimento nacional, liderado pelo Estado, com políticas que valorizem a criação de empregos de qualidade, induzindo o investimento privado e o consumo das famílias”, aponta o relatório “A desindustrialização e o setor automotivo: retomada urgente ou crise sem fim”, do Dieese. 

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Paralelamente, no Quênia, a Mobius Motors (fundada em 2009) está desenvolvendo um SUV que custará US$ 12.500 (o equivalente a R$ 66,1 mil); no Zimbábue e no Botswana, um novo modelo da Mureza (marca sul-africana) será produzido e vendido por US$ 12.450; a Kiira Motors (de Uganda) confirmou o lançamento de modelo híbrido, em Uganda, e a Innoson (da Nigéria), um popular de US$ 9.555. 

É inequívoco que, há décadas, a indústria automotiva brasileira se contenta com migalhas, mas pode ser que, em breve, as multinacionais resolvam pôr a mesa em outro lugar – em outro continente. Daí, nem as sobras que elas sempre deixaram cair nos restarão…

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