Por que o fenômeno da “uberização” está em crise no Brasil

Com condições precárias e ganhos cada vez menores, mais de 25% dos motoristas de aplicativo já desistiram da jornada exaustiva e de assumir riscos sozinhos
JC
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29.09.2021 às 10:25 • Atualizado em 23.12.2021
Com condições precárias e ganhos cada vez menores, mais de 25% dos motoristas de aplicativo já desistiram da jornada exaustiva e de assumir riscos sozinhos

Por Homero Gottardello

Desde o mês de agosto, entre 25% e 40% dos motoristas de aplicativos, nominalmente os que trabalham pelas plataformas da Uber e 99, desistiram do modelo que promete uma vida sem patrão, sem as obrigações da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) e com ganhos ilimitados, impondo sua “meritocracia” a cada colaborador. 

A debandada acontece pouco depois de a Uber comemorar a marca de 1 milhão de parceiros cadastrados no Brasil, contingente que em menos de 45 dias sofreu suas piores e maiores baixas. 

De repente, este verdadeiro exército de desempregados se deu conta dos direitos e benefícios que lhe foram suprimidos: da jornada com horários bem definidos, que garantia o descanso remunerado, folgas e finais de semana para o convívio familiar, do salário que, por pior que fosse, caia na conta bancária todos os meses, até no período de férias. 

Hoje, sentem saudade de uma formalidade da qual muitos, simplesmente, abriram mão e que, muito dificilmente, terão de volta.

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“Até 2020, o gasto com combustível consumia entre 20% e 30% do faturamento. Hoje, varia entre 40% e 60%. Só ficou quem tem restrição de nome – nos serviços de proteção ao crédito – e não tem outra opção”, disse à revista Carta Capital o presidente do Sindicato dos Trabalhadores com Aplicativos de São Paulo (STATTESP), Leandro da Cruz Medeiros.

“Hoje, o motorista está pagando para trabalhar”, garante o presidente da Associação dos Motoristas de Aplicativos do Rio Grande do Sul (Alma), Joe Moraes. 

Com condições precárias e ganhos cada vez menores, mais de 25% dos motoristas de aplicativo já desistiram da jornada exaustiva e de assumir riscos sozinhos

“Com a alta nos preços dos combustíveis, cerca de 50% dos motoristas deixaram a profissão no Estado. A rotina é desgastante e a lucratividade, cada vez menor”, conta a presidente do Sindicato mineiro dos Condutores que Utilizam Aplicativos (Sicovapp), Simone Almeida.

“A sensação é de indignação, porque a categoria não teve reajuste desde 2015. E agora, quando ele vem, é abaixo do justo”, avalia o presidente da Associação dos Motoristas de Aplicativos em São Paulo (Amasp), Eduardo Lima de Souza, em referência aos aumentos concedidos tanto pela Uber, quanto pela 99, na semana retrasada.

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A opinião unânime é que os reajustes, que vão de 10% a 35%, dependendo da plataforma e da região metropolitana do país (são 20, ao todo) em que rodam os parceiros, não impedirão uma debandada ainda maior.

Outro fator que também enxugou os quadros da “uberização”, como este tipo de trabalho precarizado ficou conhecido mundialmente, foi o aumento de até 30% nos preços dos aluguéis de veículos.

“Pelo menos uma de cada quatro pessoas que alugavam automóveis de passeio para trabalhar como motorista de aplicativo abandonou a atividade”, disse ao Yahoo! Finanças o presidente da Associação Brasileira de Locação de Automóveis (Abla), Pablo Miguel Júnior.

“Se o litro da gasolina voltasse a ficar entre R$ 4 e R$ 5, saltaríamos de 170 mil para 250 mil carros alugados para este tipo de atividade”, estima o executivo, com a credulidade de quem crê numa redução dos preços da gasolina e do etanol – seria menos ingênuo se acreditasse em Papai Noel.

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Relações em baixa, ações em alta

Com condições precárias e ganhos cada vez menores, mais de 25% dos motoristas de aplicativo já desistiram da jornada exaustiva e de assumir riscos sozinhos

Fato é que, enquanto até mesmo os mais ingênuos tomam ciência de que o neoliberalismo só é bom para monopólios (nunca para os trabalhadores), a Uber anunciou a seus acionistas que espera, pela primeira vez, sair do vermelho. 

O anúncio de que suas reservas brutas chegam a US$ 24 bilhões (o equivalente a quase R$ 130 bilhões) e que o balanço do segundo trimestre deste ano deve apresentar lucro, fez as ações da plataforma subirem 11%. 

“Se uma crise gera oportunidades, foi exatamente isso que aconteceu com a Uber nos últimos 18 meses”, declarou o presidente-executivo (CEO) da empresa, Dara Khosrowshahi, à norte-americana CNBC. 

Só entre abril e maio, foram feitas 1,51 bilhão de viagens pelo aplicativo, o que representa um aumento de 4% em relação ao primeiro trimestre e de 105%, em relação ao segundo trimestre de 2020. Em outras palavras, enquanto os parceiros se lascam, a Uber nada de braçada em meio à pandemia.

Enquanto, numa ponta, seus acionistas esperam lucro de até US$ 25 bilhões (R$ 135 bilhões), na outra, os incautos motoristas descobrem uma dura realidade: 

“As plataformas prometiam trabalho para os desempregados, mas para um motorista conseguir uns trocados tem que rodar até 16 horas diárias, de domingo a domingo”, é o que constatou o presidente da Associação Sergipana dos Motoristas Autônomos por Aplicativo (Asmaa), Josean dos Santos, depois de cinco anos como parceiro da Uber. 

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Em 2015, ele deixou a gerência administrativa de uma empresa para “ganhar mais” com a plataforma. Doce ilusão...

Mas a situação parece ter chegado em um ponto de inflexão. E se os legisladores não são rápidos o suficiente para aprovar mecanismos de proteção ao trabalho, a Justiça vem se antecipando e reconhecendo o que é mais do que óbvio: que o vínculo jurídico, de fato, entre a Uber e seus parceiros “alinha-se em todas suas características a uma relação de trabalho”, é o que se extrai da decisão de um juiz holandês, publicada na semana passada.

Em março, uma juíza federal americana já havia estendido aos motoristas de aplicativos o direito a proteções trabalhistas, com “um atraso evitável e indesculpável”, frisou a magistrada LaShann DeArcy Hall, em sua sentença. 

Já no Brasil, quatro Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs) descobriram que a empresa vinha usando seus algoritmos não só para as viagens, mas também para “mapear” as cortes onde a interpretação da jurisprudência a favorecia.

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“Dumping social”

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“A forma da prestação de serviços não desnatura a relação de emprego, fundada na exploração do trabalho por conta alheia”, relatou o desembargador Marcelo Ferin D’Ambroso, da 8ª Turma do TRT4, de Porto Alegre (RS), que condenou a Uber em R$ 1 milhão pelo que chamou de “dumping social”. 

Para ele, o mero fato de o condutor usar veículo próprio, além de arcar com todos os custos e riscos das corridas, não significa independência em relação à Uber, que detém um poder “controlador e fiscalizador” sobre os parceiros. 

E a subordinação, quesito que muitas vezes não era reconhecido, foi apontada por D’Ambroso como uma “fraude informática”, operada pelo próprio aplicativo, que fere “a dignidade humana do trabalhador, resultando – inclusive – em concorrência desleal” com os táxis.

Nos Estados Unidos, foram necessários dez anos de luta nos tribunais até que a Justiça californiana reconhecesse o vínculo de emprego entre a Uber e seus parceiros, a partir de 2019. 

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“Eu espero que o Brasil acabe com esta aberração trabalhista”, disse ao jornal “Brasil de Fato” o ex-motorista de aplicativo Wagner Martins de Oliveira, primeiro brasileiro a processar a companhia. 

“Como a empresa só iniciou suas operações no Brasil em 2014, penso em 2024 como o ano para uma solução definitiva sobre o vínculo empregatício”, delineia Oliveira – autor do livro “Minha Batalha Contra a Uber”. 

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Evidentemente que a plataforma, como grande referência deste modelo de negócio, é citada nominalmente pelo ex-colaborador, mas trata-se de uma questão que abrange todos os outros aplicativos, seus desenvolvedores e operadores, que usam programas semelhantes para prestação de serviços.

Enquanto os legisladores brasileiros não se sensibilizam com a precarização do trabalho, nem se estabelece uma súmula vinculante por parte do Tribunal Superior do Trabalho (TST), parece claro para todos, inclusive para os usuários mais atentos destes aplicativos, que a conta não fecha. 

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Os motoristas que tentam, desesperadamente, fugir da crise não têm condições de suportar todo o ônus de uma operação, enquanto o desenvolvedor se exime de qualquer responsabilidade para além do fornecimento de um software. 

“O algoritmo é implacável na vigilância”, alerta Oliveira. “Hoje, o quilômetro rodado para quem é motorista de aplicativos varia entre R$ 0,40 e R$ 0,90. É um verdadeiro circo, só que o palhaço é o condutor. E o pior de tudo é que, como estas plataformas estão, supostamente, dando trabalho para 5 milhões de pessoas, incluindo os entregadores, a evasão de divisas, a sonegação de impostos e o caos no trânsito ainda são vistos por muita gente como uma solução para o desemprego”.

O ex-motorista chama atenção para tantos pontos que nos perguntamos como, até hoje, ninguém se deu conta do modelo rebaixante que esse tipo de plataforma põe em prática em nosso mercado. Realmente, é como diz o ditado: “Para quem está se afogando, jacaré é tronco”...

Imagens: Shutterstock

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