BYD Dolphin, zero-quilômetro, por menos de R$ 43 mil?
Enquanto preços dos 0 km subiram 180% no Brasil, nos últimos dez anos, deflação atrás da Grande Muralha já preocupa governo chinês, que pede para montadoras encerrarem guerra de preços
Nos últimos dez anos, o preço do zero-quilômetro subiu até 180% no Brasil – só nos últimos cinco anos, a alta média foi de 40%. Trata-se de uma ocorrência até certo ponto inexplicável, já que nem na Ucrânia, nem no Irã ou em Israel, países mergulhados em crises internas e guerras, isso ocorreu.
Independentemente de o consumidor brasileiro se sujeitar a este tipo de prática neoliberal, iludido de que essa inflação é “culpa” da carga tributária nacional sobre o setor, o fato é que do outro lado do mundo, o comunismo experimenta um fenômeno inverso. Acredite se quiser, a deflação (ou seja, a queda nos preços) vem preocupando o governo chinês, depois de 32 meses seguidos de reajustes negativos e descontos que chegam a 30% dos valores de tabela.
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“Há um misto de nervosismo e choque”, reconhece o analista da associação dos concessionários de lá (CADA), Zhong Shi – apenas para o leitor ter uma ideia, os revendedores associados à CADA comercializam nada menos que 65 mil veículos usados por dia, isso sem contar os 0 km. “Montadoras menores e startups estão perdendo competitividade, porque há uma verdadeira ‘guerra’ que as obriga a reduzirem suas margens de lucro”, acrescenta Shi.
Se, no Brasil, o consumidor não liga de entregar seu suado dinheirinho para fabricantes o converterem em bilhões de dólares enviados como remessa de lucro para matrizes estrangeiras, na China parece haver um desequilíbrio entre oferta e demanda, típico do mais puro dos capitalismos. “Este desequilíbrio continuará alimentando a reflação – característica de um período de reativação econômica, diferente da inflação e da deflação – que acompanhamos, estimulando a economia ao mesmo tempo em que se busca restaurar os preços para níveis considerados saudáveis”, pontua o economista-chefe para o mercado chinês da consultoria Morgan Stanley, Robin Xing.
“Espera-se, agora, uma política econômica para aumentar a atividade econômica, revertendo a tendência atual de queda nos preços”, complementa o analista.
O Ministério da Indústria chinês publicou um comunicado, há poucas semanas, afirmando que se unirá às agências regulatórias para “combater a concorrência desleal e tomar as medidas necessárias”.
O governo, literalmente, pediu que sua indústria automotiva interrompa as guerras de preços, considerada uma ameaça à saúde e ao desenvolvimento sustentável do setor. “Executivos de gigantes automotivas chinesas vêm se desentendendo, à medida que a competição se intensifica no maior mercado do mundo, desde que a disputa de preços começou, no início de 2023. Agora, o governo tenta convencer as montadoras de que não há vencedores, até agora, e nem haverá no futuro”, comenta Xing.
Usados que nunca rodaram
Os descontos ofertados pela BYD, por exemplo, incluem subsídios governamentais para renovação da frota e reduzem o valor do Dolphin para apenas 55.800 yuans (o equivalente a inacreditáveis R$ 42.770). Na prática, o consumidor chinês está pagando 45% menos por um EV de médio porte do que o coitado do brasileiro paga por um Fiat Mobi ou por um Renault Kwid, dois subcompactos.
“Não são preços saudáveis para o mercado”, afirma o chefão da Great Wall, Wi Jianjun. “São valores tão baixos que pressionam os resultados do setor, afetando a lucratividade”, acrescenta Jiajun, destacando o surgimento dos “usados 0 km” como sintoma de uma situação irreal.
Enquanto os patriotas brasileiros combatem o comunismo imaginário em Pindorama, ao mesmo tempo em que pagam os maiores preços do mundo por um automóvel novo, a queda nos preços parece não sensibilizar os chineses, que não se sentem lá tão seduzidos nem pelos R$ 42.770 cobrados por um BYD Dolphin – no Brasil, o mesmo modelo custa R$ 139.800.
Neste cenário, o fenômeno dos “usados 0 km” decorre do fato de milhões de veículos que nunca rodaram, mas que foram faturados e emplacados, estarem sendo ofertados em plataformas online e nos salões de usados. Ou seja, trata-se de um autêntico zero-quilômetro, que nunca saiu de dentro do concessionário, sendo vendido pelo preço de um usado – apenas para liberar espaço no salão do revendedor.
Bom o fato é que a situação, de tão antagônica à que vivenciamos no Brasil, levou o Ministério do Comércio chinês a convocar os fabricantes para reverem suas metas comerciais, já que entre 3.000 e 4.000 plataformas de usados estão vendendo, na verdade, automóveis novos em seus sites.
O mais surpreendente, no entanto, é atestar que, mesmo em meio a uma guerra interna de preços e enfrentando assédios tarifários na Europa e nos Estados Unidos, o setor automotivo chinês desafia a lógica neoliberal também em relação à capitalização de mercado das suas marcas. Afinal, só nos seis primeiros meses deste ano, as duas maiores companhias de trás da Grande Muralha, que são a Xiaomi, cujo valor saltou de de US$ 116,9 bilhões para US$ 182,1 bilhões (+55%), e a BYD, cujo valor pulou de US$ 103,3 bilhões para US$ 142,9 bilhões (+38,3%), registraram ganhos, enquanto os grupos Mercedes-Benz (queda de US$ 60,7 bilhões para US$ 56,8 bilhões) e Stellantis (queda de US$ 36,2 bilhões para US$ 29,9 bilhões) tiveram perdas de -6,5% e -17% no mesmo período, respectivamente.
Como diria o ilustríssimo matemático e físico francês Blaise Pascal (1623-1662), há uma intelecção nos negócios da China que “a própria razão desconhece”...
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