Como a indústria automotiva da China infla bolha que pode estourar

Vendas em queda e com prejuízo, redução de subsídios, fornecedores espremidos, alto endividamento: a receita para o caos.

PK
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24.06.2025 às 18:53
Vendas em queda e com prejuízo, redução de subsídios, fornecedores espremidos, alto endividamento: a receita para o caos.

Caíram como uma bomba as declarações do bilionário chinês Wei Jianjun, dono e presidente da Great Wall Motor, dentre outros negócios, ao site Sina Finance. No fim de maio o empresário disse com todas as letras que a indústria automotiva chinesa “está doente e à beira do caos”, inflando seus números com vendas falsas, encobrindo prejuízos crescentes e praticando cortes em padrões de qualidade.

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Wei chegou a comparar a situação atual da indústria com o episódio da Evergrande, gigante incorporadora imobiliária chinesa que inflou balanços, se afundou em dívidas bilionárias e foi à falência no ano passado, levando junto para o buraco grande número de empresas.

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O mercado chinês de veículos continua sendo o maior do mundo por larga margem em volumes, mas vem reduzindo aceleração e zerando rentabilidade, ao mesmo tempo em que a concorrência entre os fabricantes aumentou em escala acima do que os consumidores podem absorver. O resultado é uma guerra de preços sem precedentes, com o uso de descontos abusivos e práticas heterodoxas para inflar as vendas e ganhar participação de mercado e incentivos do governo a qualquer custo, promovendo uma falsa prosperidade.

As vendas crescentes de carros elétricos e híbridos plug-in estão lastreadas em subsídios que estão sendo cortados pelo governo chinês, o que armou uma espécie de “bomba-relógio” para os fabricantes. “Os veículos eletrificados estão perdendo muito dinheiro”, afirmou Wei Jianjun durante a entrevista. “Não há meio de sustentar este modelo, nenhum negócio pode sobreviver sem lucro. O capital já fez seus lucros e os investidores que chegaram mais cedo já partiram [venderam suas ações]. Agora, todos [os fabricantes] estão vendendo com prejuízo. A indústria automotiva já está vivendo seu momento Evergrande”, analisou.

No ano passado, sintomaticamente e silenciosamente, o megainvestidor estadunidense Warren Buffett vendeu a maior parte das ações da BYD que possuía, reduzindo a um mínimo a participação de seu fundo de investimento na companhia chinesa, o que o mercado entendeu como sendo uma redução de exposição ao risco.

Venda com prejuízo

O dono da GWM expôs a prática adotada por grande número de montadoras de vender carros zero quilômetro como usados, com descontos nos preços de 20% a 30%. A tática, que pode ser considerada uma fraude comercial, é velha conhecida do mercado brasileiro, chamada aqui de “rapel”: o fabricante emplaca carros ainda sem compradores para inflar seus números de vendas.

No caso chinês, as montadoras ainda asseguram incentivos do governo para cada automóvel eletrificado vendido, o que estimula a expansão de uma bolha. Vender veículos por preços menores do que os de compra está se tornando regra na China, jogando à frente uma situação que tende a ficar insustentável.

Segundo agências de notícias da Ásia, por meio da concessão de grandes descontos e financiamentos subsidiados, os fabricantes estão enviando volumes de carros de 30% a 40% maiores do que as revendas dão conta de vender. Concessionários acusam a guerra de preços de causar prejuízos equivalentes a US$ 20 bilhões e muitos já fecharam as portas.

Assim, os pátios das concessionárias estão abarrotados de modelos zero quilômetro emplacados, mas sem donos. Esses veículos são anunciados aos milhares em sites de negociação de usados. Alguns também estariam sendo redirecionados à exportação, conferindo às montadoras o direito à devolução de impostos.

Existem concessionárias vendendo carros de 220 mil yuans [equivalente US$ 30,6 mil] por 120 mil [US$ 16,7 mil], um desconto de 45%, o que para Wei levanta sérias suspeitas sobre a qualidade: “Que tipo de produto pode sofrer redução de 100 mil yuans e continuar garantindo o mesmo padrão de qualidade? Isso simplesmente não é possível”.

Negócio insustentável

Os descontos estão desequilibrando a sustentação do mercado com preços artificialmente muito baixos, o que aumenta de forma acelerada os prejuízos de toda a cadeia automotiva chinesa, incluindo fornecedores, fabricantes, concessionários e consumidores que estariam sendo dragados para o abismo financeiro.

“Não se trata de competição de mercado, mas de um lento colapso destrutivo da indústria”, disse um graduado executivo do setor ao site China Observer.

Escaldado com o tombo da Evergrande e suas consequências, o governo chinês já detectou o problema, mas ainda não adotou nenhuma intervenção drástica.

Em 27 de maio, o ministro do Comércio convocou uma reunião a portas fechadas com associações do setor automotivo, centros técnicos, plataformas on-line de vendas e fabricantes, como BYD e Dongfeng – os maiores da China. Participantes do encontro relataram à agência de notícias Reuters que foi discutido apenas como incentivar as vendas de veículos novos e usados no país.

A questão parece mais complexa e tem a ver com um modelo insustentável de negócio, em que o crescimento precisa ser constante, sem tolerância a períodos de baixa, o que leva a prejuízos de escala: quanto mais se vende, mais se perde.

Crise pressentida

Os estoques estão subindo e os lucros estão caindo. O mercado financeiro já notou os riscos de estouro da bolha e as ações dos principais fabricantes entraram em queda: a cotação dos papéis da Geely recuou 9% no fim de maio, o tombo da BYD foi de 8,9%, da Leapmotor de 8,8% e da GWM de 5,2%.

Porta-voz da BYD afirma que as declarações são alarmistas e provocaram prejuízos a investidores na bolsa de valores. A empresa informou que pediu uma investigação às autoridades chinesas sobre os agentes que causaram as especulações.

Em seus comentários Wei não nomeou nenhum fabricante, mas a BYD – maior fabricante de carros elétricos e híbridos do mundo – vestiu a carapuça, pois é uma das que vêm adotando descontos agressivos e têm estoques de modelos usados zero quilômetro. As mesmas práticas vêm sendo adotadas no Brasil, onde a BYD montou estoques elevados de veículos e promove vendas com abatimentos de mais de R$ 30 mil.

O peso da BYD é incontestável, mas a crise em construção é maior, pois coloca em dúvida a sustentabilidade de toda a indústria automotiva chinesa. Wei destacou que os problemas podem respingar nos esforços dos fabricantes para promover os carros chineses no Exterior. A falta de integridade pode manchar a imagem de todas as marcas chinesas.

Lucro com alto endividamento e subsídios

Embora nenhuma grande empresa tenha entrado em falência, analistas alertam que o modelo de negócio não é sustentável. Os lucros apresentados nos últimos balanços, eles dizem, estão alavancados por subsídios e alto endividamento, que com as vendas sem lucros está aumentando perigosamente ao ponto de não retorno.

Os maiores fabricantes de veículos da China têm grau de endividamento que atualmente varia de 60% a 80% de seus ativos [bens e caixa]. Em 2024, os empréstimos concedidos ao setor automotivo na China chegaram à incrível marca de 3 trilhões de yuans, ou US$ 417,8 bilhões. Estaria tudo bem se a maioria das empresas não tivesse menos de três meses de caixa para honrar compromissos. Se as vendas caírem, o colapso será rápido e certo.

No caso da líder BYD, que em 2024 produziu mais de 3 milhões de veículos e segue fazendo investimentos vultosos em aumento da produção e das exportações, o índice endividamento/ativos é de 75%, com dívida de 600 bilhões de yuans [US$ 83,6 bilhões]. Analistas dizem que o caixa atual garante compromissos por seis meses. Em números não confirmados, a empresa deve 240 bilhões de yuans [US$ 33,4 bilhões] aos fornecedores e vem demorando de doze a dezoito meses para pagar suas compras – ciclo bem maior que o de três meses da Tesla.

Este é outro problema insustentável da indústria automotiva chinesa: o alto endividamento com os fornecedores que não aparece claramente e estaria maquiando os balanços – no Brasil o mesmo mecanismo foi usado para inflar lucros falsos no escândalo financeiro das Americanas.

Alguns fornecedores confirmam que levam, em média, mais de um ano para receber de montadoras chinesas, outros dizem que são pressionados a conceder descontos de 30% para receber.

O ecossistema de veículos eletrificados foi construído com subsídios: somente em 2022, foram concedidos 92,4 bilhões de yuans [US$ 12,8 bilhões] em incentivos para compra de modelos elétricos e híbridos, isto sem contar outros 500 bilhões de yuans [US$ 69,6 bilhões] em reduções de impostos, suporte de infraestrutura e benefícios locais.

Mas, em 2023, o governo chinês cortou os incentivos à compra de eletrificados e os governos das províncias estão fazendo o mesmo, o que já causou estragos: no mesmo ano, mais de quatrocentas empresas ligadas à cadeia dos elétricos na China entraram em falência; setenta delas eram fabricantes de autopeças.

Ao mesmo tempo está se fechando a porta para escoar os excedentes de produção ao exterior, com lucros bem maiores do que na China. Os fabricantes chineses exportaram mais de 6 milhões de veículos em 2024, mas governos ao redor do mundo, principalmente na Europa e América do Norte, estão impondo tarifas e barreiras alfandegárias cada vez maiores. Até mesmo em países nos quais os carros chineses são mais bem recebidos, como Tailândia e Brasil, as condições estão piorando com elevação de imposto de importação e redução de benefícios.

Intervenção esperada

Com o tsunami se formando no horizonte, crescem as especulações sobre como o governo chinês irá lidar com a situação, pois ninguém imagina que deixará sua indústria quebrar, o que tem implicações globais.

As ações esperadas ainda este ano variam e vão desde obrigar a uma consolidação do setor, com fusões de empresas e liquidação de outras, até ajuda financeira com retomada parcial de incentivos, sob condições mais rígidas. Não está claro se o governo central irá privilegiar as grandes estatais do setor, como Dongfeng, GAC, Changan, Chery, SAIC e FAW, em detrimento das grandes de capital privado como BYD, Geely e GWM.

Tudo é possível mas não sem grandes perdas, do tamanho gigante que a indústria automotiva chinesa adquiriu e que parece difícil de se autossustentar.

* Pedro Kutney é jornalista especializado em economia, finanças e indústria automotiva. É autor da coluna Observatório Automotivo, especializada na cobertura do setor automotivo, e editor da revista AutoData. Ao longo de mais de 35 anos de profissão, foi editor do portal Automotive Business, editor da revista Automotive News Brasil e da Agência AutoData. Foi editor assistente de finanças no jornal Valor Econômico, repórter e redator das revistas Automóvel & Requinte, Quatro Rodas e Náutica.

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