Como apps de delivery fizeram moto virar o transporte mais letal de SP

Acidentes com motocicletas já acumulam 40% dos óbitos e mais da metade das vítimas com ferimentos na cidade de São Paulo. Em 2020, pela primeira vez, número de motociclistas mortos superou o de pedestres
Por Jornalista Convidado
26.02.2021 às 15:01 • Atualizado em 04.03.2021
Acidentes com motocicletas já acumulam 40% dos óbitos e mais da metade das vítimas com ferimentos na cidade de São Paulo. Em 2020, pela primeira vez, número de motociclistas mortos superou o de pedestres

Por Camila Torres, Leonardo Felix e Renan Bandeira

Os aplicativos de entrega transformaram a forma com que encaramos os serviços de delivery. Os tempos de folhear as páginas amarelas da lista telefônica ou manter estrategicamente preso à porta da geladeira aquele ímã com o número da pizzaria favorita definitivamente acabaram.

Hoje, sem precisar levantar do sofá ou da cama, basta abrir o app, buscar o tipo de comida ou restaurante da vez, finalizar o pedido, deixá-lo previamente pago com o cartão de crédito e aguardar a chegada do entregador, que geralmente acontece em menos de uma hora. Fascinante, não?

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Com a pandemia do novo coronavírus, esse tipo de serviço ganhou ainda mais relevância. Só o iFood, maior das plataformas do tipo (detém cerca de 75% do mercado), praticamente dobrou o número de restaurantes cadastrados entre outubro de 2019 (116 mil) e agosto de 2020 (236 mil) no Brasil.

A situação econômica periclitante do país também levou muita gente que possui moto a se cadastrar nesses aplicativos para complementar (ou gerar) renda. Só no iFood, o número de motociclistas conveniados saltou de menos de 200 mil no início do ano passado para mais de 300 mil atualmente (informação não confirmada oficialmente pela marca). 150 mil deles, em média, estão ativos mensalmente.

Para além das questões trabalhistas que afetam esses novos profissionais, perdidos no limbo de uma área ainda pouco regulamentada, sendo considerados autônomos ao mesmo tempo em que enfrentam rotinas de mais de 12 horas diárias dedicadas às entregas, há uma outra consequência importante desse fenômeno.

Acidentes com motocicletas já acumulam 40% dos óbitos e mais da metade das vítimas com ferimentos na cidade de São Paulo. Em 2020, pela primeira vez, número de motociclistas mortos superou o de pedestres

Mortos e feridos em números

O número de acidentes com vítimas e óbitos envolvendo motociclistas vem aumentando (em especial quando analisamos os números percentuais) nos últimos anos, pelo menos na cidade de São Paulo (SP), a maior do país e que concentra o maior bolo desse novo e crescente mercado.

Segundo dados do Infosiga-SP, um sistema de informações gerenciais de acidentes de trânsito do Estado de São Paulo, em 2020 o número de motociclistas mortos em acidentes de trânsito na capital paulista superou, pela primeira vez desde o início da série histórica do sistema, o de pedestres - parte mais “frágil” da cadeia. Confira:

Motociclistas - óbitos nos últimos seis anos*

2015 - 359
2016 - 318
2017 - 305
2018 - 361
2019 - 311
2020 - 308

Pedestres - óbitos nos últimos seis anos*

2015 - 472
2016 - 396
2017 - 397
2018 - 375
2019 - 381
2020 - 271

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Acidentes com motocicletas já acumulam 40% dos óbitos e mais da metade das vítimas com ferimentos na cidade de São Paulo. Em 2020, pela primeira vez, número de motociclistas mortos superou o de pedestres

Analisando fora de contexto, fica a impressão de que houve recuo nas mortes de motociclistas nos últimos anos. Morreram menos em 2020 do que em 2015. No entanto, é preciso observar que o número geral de óbitos por acidentes de trânsito em São Paulo caiu em velocidade bem mais acelerada no período. 

Isso se deve à evolução na segurança dos carros nos últimos anos, aliada a uma evolução geral de proteção das vias (o que ajuda a explicar a queda na morte de pedestres).

Já a letalidade dos motociclistas caiu em ritmo muito menos acelerado e até estagnou em 2020, ano em que a pandemia afetou a circulação de carros na capital e, por consequência, gerou queda de 12,37% no número total de mortos por acidentes de trânsito em São Paulo, segundo o Infosiga-SP. No caso dos motociclistas, porém, a queda foi de apenas 0,96%.

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Já a CET (companhia municipal de tráfego) indica que em 2018 e 19 o número de acidentes de moto com vítimas (não necessariamente fatais, mas que sofreram algum tipo de ferimento, seja leve ou gravíssimo) voltou a crescer no município após uma forte tendência de queda a partir de 2010 (acompanhada por outros tipos de meios de transporte, quase todos ainda em queda). 

Com isso, passou a responder por quase 55% de todos os acidentes com feridos registrados na cidade. Em 2010, o percentual era de 45%. Confira (observando que a CET ainda não possui esses mesmos dados referentes a 2020):

Acidentes com vítimas - motocicletas vs total (evolução de 2010 a 2019)**

2010 - 15.224 (45,07%) de 33.780
2011 - 14.471 (45,03%) de 32.130
2012 - 15.348 (45,75%) de 33.545
2013 - 14.842 (47,73%) de 31.093
2014 - 14.027 (49,01%) de 28.618
2015 - 11.832 (48,77%) de 24.260
2016 - 9.613 (49,98%) de 19.235
2017 - 8.089 (49,77%) de 16.252
2018 - 8.165 (51,53%) de 15.845
2019 - 9.059 (54,21%) de 16.712

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Foi justamente em 2018 que os aplicativos de entrega começaram a crescer de maneira mais expressiva no país e especialmente em São Paulo. Na maior cidade do país, por exemplo, foi no último trimestre daquele ano que o iFood inaugurou na cidade o chamado full service ou “serviço rápido”, aquele em que as entregas são feitas por motociclistas cadastrados diretamente à empresa, não mais ao restaurante.

Coincidência ou não, em dezembro de 2018 o número de óbitos por acidentes de moto na capital saltou de uma média menor que 30, registrada nos meses anteriores, para 56, segundo a Infosiga-SP. Outro número importante é que as mortes registradas no período da tarde, que ficaram em 43 no ano de 2017, saltaram para 71 em 2018 e novamente 71 em 2020. Ao mesmo tempo, as mortes de madrugada caíram de 115 em 2015 para 90 no ano passado.

Como resumo da ópera, se entre 2010 e 2017 o percentual de motociclistas vítimas fatais de acidentes no trânsito de São Paulo ficava em torno de 35% do total de óbitos, de três anos para cá pulou para a faixa de 40% (mais especificamente 40,26% em 2020).

O número de infrações também é alto: só em 2020, de acordo com a companhia municipal de tráfego, houve 4.380 autuações de motociclistas na cidade por avanço de sinal vermelho e absurdas 77.059 por excesso de velocidade. Dessas últimas, 19.073 foram com velocidade acima de 20% do limite da via.

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Má formação e entregadores que não são profissionais

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Segundo José Aurelio Ramalho, presidente do Observatório Nacional de Segurança Viária, o aumento percentual na letalidade de motociclistas pode estar ligado a dois fatores: à má formação de condutores, que vêm passando cada vez mais tempo nas ruas a bordo de uma motocicleta, e à ausência de fiscalização de leis já estabelecidas para o exercício da função de motofretista.

“Se tivéssemos um treinamento melhor dos condutores, não teríamos tantos problemas. Nenhum Detran cumpre o recomendado para as aulas de motocicleta. Eles não fazem provas em circuitos nas ruas para avaliar o condutor que está tirando a carteira [de habilitação] de moto”, relata.

“Outro problema é que o estado [de São Paulo] dá o alvará de funcionamento para empresas e elas deixam entregadores se associarem sem cumprir a legislação. Existem leis que cobram que o entregador cumpra uma série de requisitos, assim como condutores profissionais de outras áreas, como taxistas ou motoristas de caminhão”, explica Ramalho.

“Mas, se a gente olhar as motos que passam com baú pelas ruas, dá para ver que boa parte delas possui placa cinza em vez da vermelha. Qualquer um se torna um entregador hoje, esteja com os requisitos cobrados por lei ou não”, completa.

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Edgar Francisco da Silva, presidente da AMABR (Associação dos Motofretistas de Aplicativos e Autônomos do Brasil), afirma que os atuais aplicativos de entrega recrutam motociclistas sem qualquer critério ou treinamento, procedimento que ele classifica como “irresponsabilidade”.

“Eles não cobram que o entregador seja capacitado ou esteja regulamentado e, por isso, pagam menos pelo frete do que recebe um motofretista [regulamentado]. As propagandas de ‘faça seu dinheiro’ ou 'seja seu próprio chefe' gera interesse nas pessoas. Quando o entregador vê a realidade, descobre que ganha pouco e que não vale a pena, mas aí já está ocupando o dia todo com as entregas e precisa pagar o financiamento da moto, então tem que seguir trabalhando”, argumenta.

“O problema é que, para ganhar um pouco a mais e se livrar disso, ele busca fazer um número maior de entregas possível num dia, e é quando começa a cometer infrações de trânsito e a correr o risco de sofrer acidentes”, completa Da Silva.

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Corrida contra o tempo (e contra outros entregadores)

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Segundo relatos de quatro entregadores ligados a aplicativos ouvidos pela Mobiauto, nenhuma das grandes empresas de delivery pelo celular promove qualquer tipo de instrução ou treinamento de segurança no trânsito para motociclistas filiados.

“O cadastro é simples, a gente só manda os documentos da moto e pessoais, e fica aguardando a aprovação. Depois de aprovar, eles mandam um vídeo que explica como temos que tratar os clientes, mas nada além disso. Pelo menos eu não recebi nada sobre leis de trânsito ou segurança”, conta Tom***.

“Nunca houve qualquer recomendação quanto a segurança ou leis de trânsito, a gente acaba usando a experiência prática de anos de profissão. A Rappi até manda uns vídeos pelo aplicativo, mas todos falam apenas sobre como deve ser um bom entregador”, acrescenta Luiz***.

Além disso, segundo os entregadores, os aplicativos fazem muita pressão para que as entregas sejam feitas no menor tempo possível, e até promovem uma espécie de “corrida” entre os motociclistas cadastrados em busca do pedido.

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Como parte deles está ligada ao serviço full service, em que trabalham diretamente sob a demanda do app, e não mais de um estabelecimento específico, o mesmo pedido aparece para vários motociclistas que estão numa mesma região. Quem chegar primeiro ao restaurante fica com a entrega. Quem chegar depois arca com o prejuízo de ter rodado à toa, esperando pelo próximo.

“Isso estimula a gente a cometer infrações. Não tem um ‘motoca’ [apelido usado pelos próprios motociclistas] que não fure o sinal vermelho, que não dê um ‘gato’ por cima da calçada… Sempre tem. Eu, no caso, passo no vermelho. Sei que é errado, mas busco fazer com consciência, parando a moto no farol, olhando para ver se vem alguém no cruzamento, e vou embora”, comenta Roberto***.

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O coro é uníssono e unânime: os delitos mais cometidos são avanço de sinal vermelho e excesso de velocidade. “O motoqueiro acaba tendo que cometer algumas infrações para fazer a entrega rápido e ganhar mais. Se seguir [a legislação de trânsito] tudo certinho, não ganha nada, acaba trabalhando de graça”, avalia Fábio***.

Segundo a CET de São Paulo, só em 2019 foram mais de 455 mil multas aplicadas a motociclistas por excesso de velocidade no município. E de 2016 a 2019, os registros de avanços de sinal vermelho cometidos por motociclistas cresceram em todos os anos. Confira os números:

Multas aplicadas a motociclistas por avanço de sinal vermelho em São Paulo:
2016 - 35.258
2017 - 35.821
2018 - 37.035
2019 - 38.070 

Outro número que vem crescendo é o de moticiclistas autuados por utilizar o celular enquanto pilotam. Afinal, eles precisam estar o tempo inteiro conectados à espera de informações sobre a próxima entrega. Veja:

Infrações por uso de telefone celular aplicadas a motociclistas em São Paulo:
2016 - 4.330
2017 - 4.562
2018 - 4.965
2019 - 5.183 

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Ainda conforme as declarações dos entregadores, quem não cumpre com os prazos demandados pelas empresas, ou mesmo sofre um imprevisto no caminho, como um acidente ou um furo de pneu, não só não recebe nenhum tipo de assistência como acaba retaliado, recebendo menos chamadas ou sendo bloqueado do aplicativo temporariamente.

“Uma vez, estava na [rodovia presidente] Dutra, peguei uma sequência de três buracos e os dois pneus da moto furaram. Acionei o suporte do aplicativo, mandei foto dos pneus para eles verem o que aconteceu, informei o que tinha acontecido e que não conseguiria prosseguir com o pedido. Dois dias depois, eles bloquearam minha conta e não posso mais fazer entregas”, relembra Roberto.

“Eu já sofri um acidente no caminho de uma entrega. Estava em São Bernardo do Campo e caí na curva do km 18 da [rodovia] Anchieta. Acabei fazendo o serviço machucado para não me prejudicar no aplicativo. Mandei mensagem para avisar que tinha me acidentado e nem deram bola, não existe nenhum suporte”, rememora Luiz.

“Eu nunca sofri acidente, mas a gente sempre conhece motoqueiros que sofreram, e não soube até hoje de algum caso que recebeu ajuda do aplicativo”, resume Tom, cujo discurso é endossado pelo de Fábio: “Nenhum aplicativo dá suporte para o entregador quando ele sofre acidente. Não dão nem auxílio financeiro enquanto o motoqueiro se recupera”.

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Empresas de entrega dizem promover segurança e oferecer seguro para acidentes

Nossa reportagem procurou as assessorias de iFood, Rappi e Uber Eats, as três maiores empresas do ramo, para questionar se existe algum tipo de diretriz quanto ao cumprimento das leis de trânsito por parte de seus entregadores ou suporte em caso de acidente. Das três, a Rappi não deu resposta.

A Uber Eats afirmou que “segurança é prioridade” e assegurou “sempre reforçar para os entregadores parceiros que é primordial respeitar o Código de Trânsito Brasileiro”. Também garantiu que “materiais educativos de trânsito são compartilhados com os colaboradores, que recebem diariamente mensagens educativas de melhores práticas no trânsito e como evitar acidentes”. 

Apontou, ainda, que seus entregadores são cobertos por seguro para acidentes pessoais sem custo adicional. O valor não foi informado.

Já o iFood informou que, “além de compartilhar boas práticas no trânsito”, assinou um termo de cooperação com a Prefeitura de São Paulo, que consiste em não adotar práticas que ofereçam valores extras por metas de entrega por tempo.

Completou que também oferece um seguro de acidente e de vida a seus colaboradores, válido tanto para rotas de entregas como retorno do entregador para casa, com limite de distância de até 30 km ou de tempo de até uma hora, para entregadores de moto, e de duas horas para entregadores que utilizam bicicleta ou patinete. O valor da cobertura é de R$ 15 mil.

*Fonte: Infosiga-SP
**Fonte: CET São Paulo
***Os sobrenomes dos entregadores foram preservados a pedido deles.

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